Em um ato de observação do cenário político brasileiro nos últimos anos é inevitável que se fite os olhos em um dos acontecimentos mais chocantes da curta história da democracia brasileira: no dia 08 de janeiro de 2023 uma turba de extremistas marcha cerca de 8 quilômetros pelo eixo monumental, em Brasília, entoando palavras de ordem, sob o signo do slogan “Brasil acima de todos, Deus acima de todos”, invadem e depredam a sede dos 3 poderes, o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, reivindicando a revogação do resultado das eleições democráticas ocorridas em 2022. Apesar da cena ser chocante e digna da atenção que lhe é dada, urge a necessidade de compreender que esse trágico evento não é isolado. O dia 08 de janeiro é o ápice de um projeto neoliberal, que vem a ser percebido no Brasil após o golpe contra presidente Dilma Rousseff, à medida que corrobora e desemboca em uma crise de peritos, sob o égide da pós-verdade.
O golpe de 2016 firmou-se sob um cenário de insatisfação da classe política e do mercado financeiro, que discordavam da forma como a presidente governava, com foco nas políticas empregadas em estatais, como a Petrobrás. Concomitante à insatisfação da elite e de parte da classe política, uma parte da população era influenciada a ir às ruas, manifestar contra o governo de Dilma Rousseff. Nesse contexto se deu o golpe contra a presidente, apoiado na desculpa jurídica das pedaladas fiscais, necessária para os trâmites do processo legal do Impeachment. Boaventura de Sousa Santos define o ocorrido no ano de 2016 como “medidas judiciais flagrantemente ilegais e inconstitucionais, a seletividade grosseira do zelo persecutório, a promiscuidade aberrante com a mídia ao serviços das elites políticas conservadoras, o hiper-ativismo judicial aparentemente anárquico, traduzido, por exemplo, em 27 liminares visando o mesmo ato político, tudo isto conforma uma situação de caos judicial que acentua a insegurança jurídica, aprofunda a polarização social e política e põe a própria democracia brasileira à beira do caos”. O autor, à época, analisou a promiscuidade da mídia ao levar informações enviesadas à população, levando a um frenesi popular. Resta, nesse sentido, observar ao que naquele momento pouco se falava e se observava: a internet como elemento central da construção da pós-verdade ou uma explicação cibernética.
Segundo a antropóloga Letícia Cesarino, no processo daquilo que se nomeia pós-verdade “circuitos neguentrópicos diferentes do sistema de peritos gan ham forças, como a política populista, o pensamento conspiratório e “encantado”, e outras formas de performatividade das mediações algorítmicas”. Nesse sentido, as atividades cibernéticas do ano de 2015 e 2016 estavam no cerne da cena criada sobre o governo e sobre a presidente. Foi na internet que montagens como a da presidente abocanhando um pombo, algo inimaginável e claramente absurdo, foi creditada por muitas pessoas e tomada como verdade, era na internet que as manifestações eram convocadas e na internet as pessoas se sentiam livres para externar o ódio que sentiam. Naquele momento em que tínhamos uma mulher no cargo mais importante do país, tínhamos, em contrapartida, manifestações regadas de sexismo, que extrapolavam o debate político. Havia um sentimento de normalização de um cenário em que se podia espalhar mentiras descaradas sobre a presidente do país, em que se podia externar um discurso de ódio sem pudores, em que se podia provocar uma manipulação popular para derrubar uma presidente que não corroborava para o projeto neoliberal. Anos após a deposição de Dilma Rousseff, se teve conhecimento de uma série de áudios de ligações e mensagens de conversas privadas que apontavam Michel Temer, então vice de Dilma, como um nome para a implantação do projeto neoliberal que almejava a elite brasileira.
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Naquele ano de 2016, tomava posse da presidência Michel Temer, nome antigo da política brasileira, que, em posse do cargo de presidente da república articulou para o sucateamento de estatais brasileiras e para o desenvolvimento de um clima de liberdade daqueles que pregavam a barbárie. Cabe, nesse contexto, o destaque de um personagem que se sentia à vontade para homenagear torturadores da ditadura militar, incitar a morte e tortura de seus adversários políticos, e pregar o autoritarismo: Jair Bolsonaro, então deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro, é o maior símbolo de como a extrema-direita utilizou-se do momento para espalhar os ideais autoritários.
Dois anos depois, Jair Bolsonaro ascende como candidato à presidência do Brasil, o que representava a institucionalização do ódio que, por ele incitado, tomava conta das redes sociais e da vida do cidadão médio brasileiro. Segundo Letícia Cesarino, “outra modulação contemporânea do neoliberalismo central ao bolsonarismo diz respeito à aliança entre conservadores e neoliberais, que nos EUA, vem ao menos desde os anos de 1970”. Nessa toada, junto a Bolsonaro, caminhavam diversos militares, banqueiros, latifundiários…,
caminhavam com Jair Bolsonaro a elite brasileira que viria a se beneficiar grandemente com sua eleição.
O cenário cibernético foi especialmente utilizado durante o Governo Bolsonaro, sob a compreensão de que o populismo conservador e o neoliberalismo “se disseminavam sob o modus operandi contemporâneo das mídias digitais”. Era através das redes sociais que o presidente se comunicava com seus eleitores, espalhava mentiras, incitava o ódio e criava um ambiente hostil que, por fim, ultrapassava as telas e se materializava na vida real. Nesse contexto, para Letícia Cesarino, “central a essa estratégia foi a infraestrutura da eu-pistemologia, visto que os eleitores completavam com seus próprios significados (particulares) os significados vazios (generalidade) disparados pela campanha Bolsonaro, colapsando, assim, a fronteira entre líder e seguidores, manipulação e espontaneidade”. Esse cenário se hostil e a serviço dos interesses neoliberais fez-se mais claro durante a pandemia da Covid-19, quando o presidente se utilizou da máquina pública para disseminar a ideia que de que o isolamento social provocaria a derrocada do “mercado”, em uma mensagem muito clara e perversa de que a vida do trabalhador brasileiro está aquém, em uma escala de prioridade, dos ganhos financeiros da elite. Apesar de essa mensagem ser uma ofensiva à massa populacional brasileira, que é trabalhadora, uma gama de pessoas que faz parte da classe trabalhadora defendeu essa ideia. Essa situação pode ser explicada através da digitalização que “opera por meio de loops cada vez mais intensivos entre cognição humana e algorítmica, numa dialética intensiva de produção e de desestruturação de hábitos desenhada para extrair, da cognição elementar dos usuários”
Os bolsonaristas, como são conhecidos os seguidores de Jair Bolsonaro, parecem viver até os dias atuais em uma bolha de inverdades, onde ideias irreais prosperam e produzem resultados reais. Durante a pandemia da COVID-19, milhares de pessoas vieram à óbito enquanto o presidente questionava a gravidade da doença e a ciência que estudava os métodos de tratamento, ao mesmo tempo em que indicava remédios para tratamento sem eficácia científica comprovada, em uma clara demonstração de como a crise de peritos (CESARINO, 2021) opera na realidade. Como explica Cesarino, “Esse mesmo ambiente tem, todavia, dado vazão a “sintomas mórbidos” como a ascensão de pseudociências, como o terraplanismo, e de grupos radicais e conspiratórios, como o QAnon nos EUA”. Nesse contexto, crenças obsoletas e irreais ressurgem e prosperam nos meios bolsonaristas, ao passo que os líderes do bolsonarismos propagam mentiras como distrações à triste realidade que assolava o Brasil.
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Nesse contexto, o dia 08 de janeiro de 2023, tal como os 3 meses que o antecedem, não é um episódio isolado. Milhares de bolsonaristas acamparam durante 3 meses em frente aos quartéis generais por todo o Brasil pedindo por ditadura militar, cantando o hino nacional para pneus, clamando por ajuda de “extraterrestres”, comemorando a falsa prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal, festejando a informação de que Luiz Inácio Lula da Silva, presidente democraticamente eleito, não havia assumido o cargo e muitas outras cenas que parecem ter ocorrido em uma realidade paralela. Todo o supracitado não surge do nada, está, na realidade, intrinsecamente ligado a um projeto neoliberal-conservador que há muito cresce e se desenvolve no Brasil.
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