Uma área 12 vezes maior que a Bélgica foi atingida por 20 terremotos em dois dias.
O terremoto Turquia-Síria, que mediu 7,8 na escala Richter, liberou uma explosão equivalente a 7,5 milhões de toneladas de TNT. Isso foi logo seguido por um tremor secundário de magnitude 6,7 no centro e leste da Turquia e um tremor secundário de magnitude 5,6 na fronteira Turquia-Síria.
A Grã-Bretanha ofereceu US$ 2,7 bilhões em armas à Ucrânia e US$ 6 milhões em ajuda humanitária para 23 milhões de pessoas na Turquia e na Síria? Isso é pra valer? aparentemente sim.
Houve quase 800 tremores secundários registrados.
Até 23 milhões de pessoas foram afetadas. No momento em que escrevo – e esses números estão mudando a cada hora – 17.674 na Turquia e 3.377 na Síria perderam suas vidas, com 72.879 feridos. Mais de 100.000 na Turquia e 300.000 na Síria foram deslocados. (NT – Dados dos primeiros dias dos terremotos)
Literalmente centenas de edifícios de vários andares, alguns com 12 andares de altura, foram reduzidos a montes de escombros. Distritos inteiros foram devastados. Estradas principais e linhas ferroviárias entre as principais cidades foram destruídas ou estão obstruídas com o tráfego de ajuda.
Transpondo um mapa desse terremoto para a Grã-Bretanha, a própria falha se estende diagonalmente do Severn, no oeste, até o estuário de Humber, no norte. Grande parte da Inglaterra, incluindo as cidades de Birmingham, Manchester e Sheffield, teria sido submetida a um abalo de nível sete.
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Essas figuras esboçam apenas os contornos desse desastre. Os detalhes virão nos próximos dias e semanas.
Perda de atenção do público
Dezenas de países enviaram equipes de busca e resgate. Mas apenas três dias depois desse desastre, exatamente no momento em que uma operação de busca e resgate se transforma em uma sombria e lenta recuperação de corpos, a tragédia está deixando de ser manchete na Europa, o vizinho imediato da Turquia.
Sabemos o que se segue a esta perda de atenção do público.
Esta semana, o terremoto foi deslocado pela visita do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, à Grã-Bretanha e a Bruxelas. O corajoso Zelensky vestido de cáqui, que se transformou na consciência política em um cruzamento entre Churchill, Boudica e Joana d’Arc, tornou-se um bilhete político quente, já que cada parlamento compete por sua presença.
O fato de ele ter visitado a Grã-Bretanha primeiro, em vez da França e Bruxelas, foi considerado uma fonte de orgulho nacional. O mesmo aconteceu com os US$ 2,7 bilhões em ajuda militar que a Grã-Bretanha deu à Ucrânia no ano passado, uma quantia que o primeiro-ministro Rishi Sunak garantiu que será igualada este ano. Isso torna a Grã-Bretanha o segundo maior doador militar para a Ucrânia.
Este é o tipo de dinheiro disponível na Grã-Bretanha quando existe vontade política. Compare com a quantia que o governo do Reino Unido disse que será gasta no terremoto Turquia-Síria. Quando as 15 instituições de caridade que compõem o Comitê de Emergência de Desastres lançaram seu apelo na quinta-feira para fornecer resgate e ajuda médica, abrigo, cobertores e comida, o secretário de Relações Exteriores James Cleverly anunciou que o Reino Unido cobriria até US$ 6 milhões em doações.
O primeiro-ministro britânico Rishi Sunak, à direita, e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky encontram tropas ucranianas sendo treinadas para comandar tanques Challenger 2 em uma instalação militar em Lulworth, Dorset, Inglaterra, quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023.

O primeiro-ministro Rishi Sunak cumprimenta Volodymyr Zelenskyy, presidente da Ucrânia, ao chegar a Stansted, no Reino Unido. em 08 de fevereiro de 2023 [Wikimedia]
Existem duas maneiras pelas quais isso pode ser medido na escala Richter da desumanidade do homem para com o homem.
Em nível humanitário, desastres em escala global exigem uma resposta global que transcenda a política – ou o grau em que o presidente turco Recep Tayyib Erdogan ou o presidente sírio Bashar al-Assad são tratados como párias em reuniões de grandes e bons como Davos.
Um dia depois do desastre, a revista satírica francesa Charlie Hebdo publicou uma charge mostrando um prédio danificado, um carro tombado e um monte de entulho com a legenda: “Não há necessidade de enviar tanques”.
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Isso foi mais do que apenas um desenho animado de mau gosto e Charlie Hebdo não é uma revista satírica qualquer.
Em 2015, o Hebdo se tornou o epicentro do que foi descrito como a defesa da democracia e da liberdade de expressão contra ataques de fanáticos e terroristas – tanto quanto a Ucrânia é apresentada hoje. Seus escritórios em Paris foram atacados por Said e Cherif Kouachi, alegando representar o grupo militante Al-Qaeda, matando 12 pessoas e ferindo outras 11.
O ataque provocou manifestações em massa. O slogan Je Suis Charlie se tornou viral. Charlie Hebdo tornou-se um símbolo da liberdade de expressão sob ataque de bárbaros com barbas. Para atingir esses fins, o racismo sem verniz do Charlie Hebdo foi então varrido para debaixo do tapete, como continua sendo hoje.
Poucas organizações de mídia se referiram à sua última excrescência, embora a mídia social não tenha demorado a reagir.
Um erro de grandes proporções
Muito tem sido escrito sobre o lento desaparecimento dos Estados Unidos e da Europa no cenário mundial, conduzido por exércitos desorganizados do Talibã em Cabul ou ataques frontais suicidas do exército de condenados do grupo Wagner em Donbass.
A relutância da UE em ser a primeira resposta nesta crise é totalmente voluntária. É um erro não forçado de grande proporção
Mas a relutância da UE em ser a primeira a responder nesta crise é totalmente voluntária. É um erro não forçado de grandes proporções. Esta é uma chance de mostrar liderança moral e humanidade para milhões de pessoas. É uma chance de falar diretamente com eles, não com seus governos ou presidentes manobrando para a reeleição.
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Esta é uma chance de mostrar ao mundo que o Ocidente pode tanto reconstruir quanto destruir. Mas este último é o sentimento nas mentes da fortaleza Europa hoje. A Fortaleza Europa protege sua riqueza. Suas altas cercas eletrificadas e patrulhas de drones estão lá para manter as hordas pagãs afastadas.
Que estímulo mais forte você poderia dar a milhões de pessoas para procurar liderança em outro lugar?
Embora nenhuma quantia significativa tenha sido arrecadada na Grã-Bretanha, França ou Alemanha, os sauditas arrecadaram mais de US$ 51 milhões quatro dias após o lançamento da plataforma Sahem para o alívio da Síria e da Turquia.
É uma bagatela para qualquer membro da família real saudita, mas uma doação significativa dos próprios sauditas. Isso envergonha a Grã-Bretanha. No entanto, vamos abandonar a moralidade ou qualquer senso de humanidade comum.
Vamos seguir o zeitgeist do interesse próprio.
Números surpreendentes
Antes da guerra na Ucrânia, o Oriente Médio respondia por 25% dos requerentes de asilo na Europa em 2021, e desses o maior número veio da Síria, Iraque e Turquia em quinto lugar. O Afeganistão ficou em segundo lugar.
A guerra na Síria transformou a Turquia no maior país anfitrião de refugiados do mundo, abrigando mais de 3,6 milhões de refugiados sírios e 320.000 pessoas de outras nacionalidades. Ela gastou US$ 5,59 bilhões em ajuda humanitária no ano passado, respondendo por 0,86% de seu PIB, o que a torna uma líder mundial, de acordo com um relatório da Development Initiatives.
Em termos de dinheiro gasto, a Turquia perde apenas para os Estados Unidos. Estes são números surpreendentes para um governo tantas vezes vilipendiado no Ocidente.
Mas esse esforço não é imutável. Os partidos de extrema-direita turcos, como o partido da Vitória, realizam campanhas à espreita, arrecadando fundos para passagens de ônibus para deportar sírios. Voltando-se para alguém para culpar pelos lentos esforços de socorro, alguns turcos estão se voltando contra os refugiados após este desastre.
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Esses são eventos grandes o suficiente para impulsionar futuras ondas de refugiados, pois a operação de reconstrução levará anos, senão décadas.
É absolutamente do interesse da Europa garantir que a Turquia possa enfrentar e continuar sua política de reassentamento de refugiados no norte da Síria. Mas a Síria também, outrora o foco de tanto armamento secreto ocidental, foi abandonada. Refugiados sírios morriam de frio muito antes do terremoto atingir Aleppo e Idlib.

Um idoso sírio reage enquanto uma mulher limpa a neve que cobre uma barraca em um acampamento, em 23 de janeiro de 2022 [Abdulaziz Ketaz/AFP via Getty Images]
Os sírios sob controle do governo não estão se saindo melhor. O estado é destruído pela guerra e, como o Irã nos primeiros dias da República Islâmica, é prejudicado por sanções.
Um destino bíblico
A cada ano, o abismo entre a coisa certa a fazer e as coisas que acabamos fazendo aumenta. A cada ano, as palavras proferidas pelos líderes europeus tornam-se mais grotescas.
É absolutamente do interesse da Europa garantir que a Turquia possa enfrentar e continuar sua política de reassentamento de refugiados no norte da Síria
Em outubro passado, o principal funcionário da política externa da UE, Josep Borrell, discursou na inauguração da Academia Diplomática Europeia em Bruxelas, em 13 de outubro. Isto é o que ele disse, de acordo com a transcrição oficial:
“A Europa é um jardim. Nós construímos um jardim. Tudo funciona. É a melhor combinação de liberdade política, prosperidade econômica e coesão social que a humanidade foi capaz de construir – as três coisas juntas. … A maior parte do resto do mundo é uma selva, e a selva pode invadir o jardim. Os jardineiros têm que ir para a selva. Os europeus têm de estar muito mais envolvidos com o resto do mundo. Caso contrário, o resto do mundo nos invadirá, de diferentes maneiras e meios.”

[Latuff]
A Europa aproveitará este momento? Duvido, pois há muito abandonei a crença no conceito de progresso. E o jardim do Éden de Borrell merece plenamente seu destino bíblico.
Artigo originalmente publicado na edição francesa do Middle East Eye.
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