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Pesadelo persiste após a queda de Saddam, relatam iraquianos

Ex-ditador iraquiano Saddam Hussein é interrogado pelo juiz Raid Juhi, chefe de inquérito no Tribunal Especial do Iraque, em 23 de agosto de 2005 [Tribunal Especial do Iraque/Getty Images]
Ex-ditador iraquiano Saddam Hussein é interrogado pelo juiz Raid Juhi, chefe de inquérito no Tribunal Especial do Iraque, em 23 de agosto de 2005 [Tribunal Especial do Iraque/Getty Images]

Os Estados Unidos prometeram que sua invasão militar de 2003 traria à luz uma nova era de democracia para o Iraque. Vinte anos depois, iraquianos de diferentes etnias, denominações e ideologias afirmam não ver ainda os dividendos da guerra.

O então presidente iraquiano Saddam Hussein foi capturado em dezembro daquele ano, julgado e executado três anos depois. Ao longo dos anos, seu regime se tornou conhecido por ataques sectários contra xiitas e curdos. As promessas do sonho americano, com a queda da ditadura, porém, jamais se materializaram.

Aqui estão alguns relatos pessoais das últimas duas décadas:

Um muçulmano xiita: Ahmed Nasser

Em 2007, Nasser e seu companheiro de time, Ihab Kareem, foram às compras em Bagdá em busca de novas chuteiras antes de começar a temporada da primeira divisão do Campeonato Iraquiano. Ao fim do dia, Kareem estava morto e Nasser havia perdido as pernas.

Uma bomba – uma das muitas que devastaram a capital nos anos de violência após a invasão – detonou quando os amigos, muçulmanos xiitas, pararam para comer um sanduíche. Kareem faleceu naquele instante trágico. A vida de Nasser mudou para sempre.

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“Seria melhor se Saddam tivesse permanecido no poder, eu não teria perdido minhas pernas … Isso nunca teria acontecido, não havia sectarismo sob seu governo”, afirmou Nasser, que agora joga basquete em uma equipe paralímpica de cadeira de rodas.

Um muçulmano sunita: Mohannad Lafta

Na juventude, Mohannad Lafta costumava colar cartazes de Saddam Hussein, não porque o apoiava, mas para evitar as repercussões de ser rotulado como dissidente, como seu pai, que se opunha à ditadura baathista do ditador e foi executado.

Mas a queda do ditador, que governou o Iraque por décadas, não trouxe tempos melhores.

“Gostaria de poder dizer ao meu pai, que foi executado por causa de seus princípios contra o regime baathista, que aqueles que governam o país hoje são ainda mais brutais”, disse Lafta, funcionário público de 51 anos.

Em 2006, a violência sectária eclodiu em seu bairro, de maioria sunita, em Bagdá, após um ataque a bomba destruir uma mesquita xiita. Atiradores xiitas percorreram as ruas e sua família teve que se mudar às pressas.

“Pensamos que poderíamos descansar, mas não existe descanso no Iraque”, lamentou Lafta, ao recordar como sua esposa e seus filhos viviam aterrorizados, em meio aos morteiros que caíam sobre sua nova casa, forçando outra mudança.

“Não quero que meus filhos cresçam em um país dilacerado por guerras, sectarismo e corrupção”, reiterou Lafta. “Não quero que sofram como eu”.

Um curdo: Aras Abid

Aras Abid tinha todas as razões do mundo para querer a queda de Saddam, já que foi o único sobrevivente de um ataque com gás tóxico ordenado pelo ditador contra sua comunidade curda em 1988. Todos os outros 12 membros de sua família morreram. Ainda assim, Abid lamenta que a deposição de Saddam deixou somente um legado de caos para que outras personalidades escusas explorassem o país.

“Durante o regime baathista, havia uma família roubando a riqueza do país. Agora há milhares de Saddams roubando a todos nós”, destacou Abid. “Não tenho ideia de como lidar com essa situação. Minha vida acabou.”

Após o ataque químico contra Halabja, em 1988, Abid teve de procurar sozinho pelos corpos de seus entes queridos, em sua cidade natal.

“Esta era minha irmã, Awas; este era meu irmão, Sirias; este era meu avô. Então vi minha mãe, uma criança estava em seus braços”. Era seu irmão de seis meses de idade, morto enquanto mamava no peito de sua mãe.

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Após a queda de Saddam, os curdos criaram uma região semi-autônoma no norte do Iraque, atraindo investimentos em petróleo e gás. Contudo, dois lados brigam até hoje pelos espólios da guerra. Quando os curdos realizaram um referendo pela independência em 2017, o Iraque ordenou que suas tropas tomassem as terras e cortassem recursos da região.

“Não temos como contrapor as forças políticas”, deplorou o cidadão curdo. “Fomos derrotados mais uma vez”.

Um ativista: Jassem Al-Assadi

Jassem Al-Assadi foi preso e torturado sob o regime de Saddam por se recusar a jurar lealdade ao Partido Baath. No mês passado, Al-Assadi reviveu um horror semelhante ao ser sequestrado e  torturado por homens armados. Desta vez, foi pior.

Al-Assadi – engenheiro hidráulico e ativista ambiental de 65 anos – foi vendado, algemado, espancado com pedaços de madeira, eletrocutado e colocado em confinamento solitário.

“As técnicas de tortura a que fui submetido superaram os níveis que os baathistas realizavam contra seus prisioneiros”, reiterou o veterano ativista.

Um membro da minoria sabiana: Faiza Sarhan

Faiza Sarhan, de 50 anos, membro da antiga religião sabeia, recordou que sete membros de sua família foram enforcados durante o governo de Saddam por pertencerem ao Partido Comunista. Apesar da evidente perseguição política, durante a ditadura, minorias religiosas eram toleradas, raramente perseguidas por suas crenças, embora oprimidas em caso de oposição ao regime.Após a queda de Saddam, no entanto, a comunidade minoritária iraquiana se tornou alvo de radicais islâmicos, rotulados como “apóstatas” ou “adoradores do diabo”.

Sarhan não sente saudade da repressão, das guerras e sanções dos anos de Saddam, mas anseia por segurança. Desde a invasão liderada pelos Estados Unidos, membros de sua comunidade, muitos dos quais comerciantes de ouro, foram vítimas de crimes hediondos. Sem justiça, muitos sabeus deixaram o país.

Cristãos, sabeus, yazidis e outros grupos minoritários foram alvo de sequestros e assassinatos durante a guerra civil sectária entre 2006 e 2008.

“A segurança se perdeu com a queda de Saddam. As minorias se enfraqueceram ainda mais após 2003”, deplorou Sarhan, que fugiu com sua família para a Síria em 2006. Durante esse tempo, um primo foi sequestrado e sua família recebeu ameaças de um grupo extremista.

Sarhan recordou que sua irmã e primos foram executados sob Saddam, não por suas crenças religiosas, mas por suas inclinações políticas e ativismo. Seus corpos nunca foram devolvidos.

Hoje, Sarhan dirige um centro cultural para sua comunidade no Iraque e diz que apenas 15 mil membros da denominação religiosa – uma das mais antigas do mundo – permanecem no país, em comparação com 70 mil sabeus antes de 2003. O restante vive no exílio.

Um yazidi: Khalid Aloka

Khalid Aloka viveu sob o governo brutal de Saddam, mas nada o preparou para o massacre de sua comunidade nos anos seguintes à queda do ditador.

Em 2007, militantes filiados ao grupo terrorista Al Qaeda retiraram 24 homens yazidis, incluindo dois primos, de um ônibus e os executaram, deixando crianças pequenas para trás. Temendo o mesmo destino, ele trancou a si mesmo e seus quatro filhos em casa por semanas.

Em 2014, o Estado Islâmico (Daesh) – que considerava os yazidis “adoradores do diabo” – impôs seu domínio no norte do Iraque e matou milhares de pessoas.

“Temos internet e carros modernos, mas a situação piorou”, comentou Aloka. “Não temos como saber para onde vai o Iraque”.

O Daesh foi enfim expulso da região em 2017. Contudo, muitos yazidis ainda vivem em campos de refugiados, com medo de retornar.

Aloka se viu forçado a enviar seus filhos para a Turquia e Canadá. Ele e sua esposa – ambos professores – ficaram para trás. “Não queremos que nossos filhos vivam a vida amarga que vivemos”, disse ele por telefone de sua casa na cidade de Bashiqa, no norte do Iraque.

Uma cristã: Pascale Warda

Quando as forças lideradas pelos Estados Unidos invadiram o país, a cristã iraquiana Pascale Warda estava em Londres mobilizando líderes europeus pela destituição de Saddam Hussein.

“Foi um dia memorável para nós. Acreditávamos que a ditadura havia acabado e que tínhamos tudo o que precisávamos para reconstruir o país”, recordou.

Warda queria fazer parte de uma democracia justa que sucedesse o longo e tenebroso período de Saddam e concordou em fazer parte do governo provisório. Mas Warda, de 61 anos, logo seria alvo de uma violenta campanha contra cristãos por militantes islâmicos.

Warda sobreviveu a várias tentativas de assassinato durante seus 11 meses junto ao governo. Ainda assim, acredita que o Iraque está melhor sem Saddam. Cristãos e outras minorias eram toleradas, desde que não se opusessem à ditadura, confirmou a ativista.

“Sob Saddam, segurança e repressão andavam lado a lado, pois aqueles que se manifestaram contra o regime enfrentaram terror e morte”, acrescentou. “Como os mortos, ninguém podia falar ou expressar sua opinião. Se você for a um cemitério, não ouvirá som algum. E assim era sob Saddam”.

Vários membros da família de Warda foram executados pelo Estado iraquiano. As forças de segurança devolveram corpos dos parentes em pedaços e com órgãos faltando.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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