Uma semana na vida de um iraquiano após a invasão dos EUA em 2003

O longa-metragem Our River, Our Sky se passa em Bagdá em 2006 em um período de intensa violência sectária, três anos após a invasão do Iraque. É o primeiro longa-metragem de ficção da cineasta britânico-iraquiana Maysoon Pachachi. O MEMO conversou com a diretora e roteirista sobre o contexto por trás do filme e suas expectativas com o lançamento.

“Cada personagem, cada indivíduo no filme tem sua própria história e as histórias se encontram ao longo de uma semana em Bagdá em 2006”, comentou Pachachi. “Este foi um momento de intensa violência sectária e toques de recolher noturno. Em 2006, haviam se passado três anos desde a invasão do Iraque pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos. Era uma época em que toda

a estrutura social estava desmoronando. De repente pessoas que, por exemplo, tinham um pai sunita e uma mãe xiita não podiam viver na mesma vizinhança”.

“Os iraquianos não estavam acostumados com isso, não estavam acostumados com esse tipo de divisão. De fato, é uma sociedade miscigenada e pluralista. Não apenas diferentes denominações do Islã, mas também cristãos e judeus, em particular, com uma população judaica muito grande em Bagdá. Então, todos ficaram chocados quando isso começou a acontecer”, acrescentou.

Sobre a insegurança nas ruas do país e sua relação com a narrativa da obra, observou Pachachi: “Grande parte do transporte em Bagdá, por exemplo, é feito por ônibus e minivans. Naquele tempo, em 2006, o trânsito em Bagdá era muito intenso. As pessoas ficavam presas no tráfego e nunca sabiam se alguém em um dos carros ao redor poderia começar a atirar.

No entanto, a cineasta reafirma que a atmosfera carregada do Iraque sob conflitos tão violentos continha algo um tanto inesperado. “O motorista checa o retrovisor e vê que há alguém baleado no meio dos carros, deitado em uma poça de sangue. É um humor bastante sombrio que ele tem, e todo o ônibus ri. Naqueles dias, o Iraque era como uma fábrica de piadas. Quero dizer, as pessoas estavam produzindo piadas o tempo todo e acho que uma das coisas que realmente me interessa é onde as pessoas encontram um senso de resistência, uma resistência criativa frente ao que vivenciam e ao mundo fora e dentro de si. Quando você transforma algo realmente horrível em uma piada, em algo que preserva a vida. Então foi isso que aconteceu, algo crucial que é baseado em um acontecimento real, que eu não vivenciei, mas minha corroterista sim”.

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O roteiro é assinado por Machachi e Irada al-Jubori – escritora, acadêmica e ativista, professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Bagdá. Al-Jubori também trabalhou como jornalista e colaborou com uma série de contos e roteiros para documentários.

Sobre sua colaboradora, prosseguiu Pachachi: “Na verdade, em 2006, eu estava envolvida na produção de um filme sobre um workshop fotográfico com mulheres iraquianas na Síria. Nesse workshop conheci uma romancista, contista e ativista dos direitos das mulheres. Imediatamente nos tornamos amigas e ela se tornou minha corroteirista nesse novo filme – Our River, Our Sky. Irada e eu juntamos todas as nossas histórias e começamos a extrair personagens e cenas e assim por diante. Então, esse é o começo de tudo e as histórias que as pessoas contavam sobre aquele momento de 2006, que é o tempo do filme, eram bem impressionantes … além de 35 anos de histórias de fundo. Pensei, temos de contar essa história, temos de contá-la”.

“Houve uma Intifada, uma revolta, em 1991, logo após a Guerra do Golfo. As pessoas pensavam

que os americanos as apoiariam para se livrar de Saddam, mas não foi assim. As pessoas que se rebelaram eram, na maioria, jovens rapazes que foram presos, mortos e jogados em valas comuns. Quando Saddam se foi, muitas das valas foram descobertas. Muitas pessoas foram identificadas porque tinham seus documentos de identidade nos bolsos e assim por diante. Então, de vez em quando, eles publicavam ‘listas de valas comuns em tal lugar’, ‘estas são as pessoas que encontramos’. E as pessoas iam semana após semana e não encontravam o nome de seus filhos. E temos uma cena em particular: a pessoa vai até lá, mas é analfabeta, não sabe ler nem escrever. Então ela tem que pedir para alguém ler para ela, para ver se consegue encontrar seu filho”.

Sobre os objetivos da obra: “Bem, eu queria conversar com o público aqui no Ocidente e com o público do Oriente Médio. Especialmente aqui, no Reino Unido e nos Estados Unidos, porque houve enormes manifestações contra a guerra e, ainda assim, ela aconteceu. E a maneira como a guerra foi travada em nome das pessoas nesses dois países. E eles não sabem nada sobre o que aconteceu. Porque as pessoas pensam, “Ok, os tiroteios pararam, os tanques foram retirados, está tudo bem”. Não está tudo bem. Há essa coisa do dano que a guerra deixa e o que ela faz com a vida das pessoas e tudo mais. Eu realmente quero que as pessoas compreendam”.

“O filme é realmente sobre como as pessoas encontram coragem para renovar uma frágil noção

de esperança toda manhã, quando a situação do lado de fora é tão imprevisível, tão violenta e tão destrutiva. Foi nisso que busquei me concentrar, em vez do sangue nas ruas”, acrescentou.

Perguntamos a Pachachi sobre o título da obra – em português, Nosso rio, nosso céu – e suas relações com o tema registrado na tela. “Eu comecei a pensar em um título que fosse um pouco mais evocativo e cheguei em Our River, Our Sky, porque o rio em Bagdá é absolutamente central para a alma da cidade. É a alma da cidade. E as pessoas dizem que, na verdade, pessoas que deixaram a cidade dizem, ‘Sim, eu gosto muito da Inglaterra’, e isso e aquilo outro, ‘mas não é o mesmo céu, não é o mesmo rio, aquele lugar que pertence a nós’. O título em árabe é ‘Kulshi Makoo’. Kulshi makoo é uma expressão iraquiana muito particular. E significa ‘Não há nada’. Quando você vê um amigo que parece um pouco deprimido, você pergunta: ‘O que houve? Você parece cansado, o que houve?’. E a pessoa responde: ‘la, la, la, kulshi makoo’, ‘Não, não, não’. É um lance meio estoico, ‘Estou perfeitamente bem’. Na verdade, kulshi makoo quer dizer que está tudo errado, mas é uma forma bem iraquiana de enfrentar as coisas da vida”.

“Estávamos descrevendo um momento de absoluta desintegração social, tudo estava sendo destruído, tudo estava sendo estilhaçado. Uma imagem que se repete muito na minha cabeça é quando você segura um espelho e ele escorrega das suas mãos ou você o deixa cair e ele quebra mil pedaços. Se você tiver alguma sorte, consegue juntar as peças e coisas assim. Por ora, no entanto, está em pedaços e era isso o Iraque naquela época. Então, esse era o espírito do kulshi makoo”, observou.

Sobre suas expectativas com o projeto como um todo e seu eventual lançamento internacional, concluiu Pachachi: “É muito importante para mim que as pessoas consigam se identificar com os iraquianos retratados no filme, percebam que eles vivem em condições dificílimas e pensem sobre as escolhas que fariam nessa mesma circunstância. Quer dizer, se isso realmente acontecer, ficarei muito feliz”.

Our River, Our Sky foi oficialmente lançado no Reino Unido no dia 29 de outubro de 2022, durante o Festival de Cinema de Raindance. Foi também exibido na França em abril do mesmo ano, no Festival Cinémas du Sud de Lyon. Sua primeira exposição ao público ocorreu em 19 de agosto de 2021, durante o Festival de Cinema de Sarajevo, na Bósnia e Herzegovina.

O filme em árabe – considerado um drama de guerra, com cerca de duas horas de duração – foi ainda laureado pelo British Independent Film Awards (BIFA), que reconheceu a performance de seu elenco, com uma premiação e duas indicações na categoria.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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