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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

Israelenses nas ruas e a sombra do apartheid no espelho

Protesto contra as reformas judiciais propostas pelo governo de Israel, em Tel Aviv, 9 de março de 2023 [Mostafa Alkharouf/Agência Anadolu]
Protesto contra as reformas judiciais propostas pelo governo de Israel, em Tel Aviv, 9 de março de 2023 [Mostafa Alkharouf/Agência Anadolu]

A entrada do Ramadã, período de invocação da paz para os muçulmanos, e que anualmente tem sido marcado por provocações sionistas e invasões da mesquita de Al-Aqsa, este ano acontece com Israel em pé de guerra.  Mas o cerco aos palestinos e o avanço sobre Jerusalém, que fazem a história da ocupação desde o século passado,  não são desta vez o destaque da agitação, embora permaneçam no  pano de fundo.

Israelenses estão nas ruas agora contra um processo em curso no coração do Estado de Israel – a reforma judiciária que lhes tira a ilusão de justiça e democracia, ainda que seletivas em relação aos palestinos. Nada impede porém que a raiva exploda nas habituais demonstrações de intolerância e violência contra palestinos e cristãos no mês sagrado islâmico que começa hoje mas coincide também  com o Pessach judaico, em 5 de abril,  e a Páscoa cristã, em 9 de abril.  Mas há uma luta travada entre israelenses e os rumos do regime.

Os extremistas no poder e os defensores de uma democracia seletiva marcham nas ruas, enquanto o apartheid avança com apoio de todos [Latuff]

O golpe ao judiciário que Israel está promovendo para salvar Netanyahu guarda alguma semelhança, em diferentes  proporções, com aquelas ameaças de impeachment feitas a ministros do STF no Brasil em 2022 pelo aliado bolsonarismo. Nos dois casos, o casuísmo de querer controlar a justiça para defender-se dela  é só um aspecto menor de  um serviço prestado à extrema direita internacional que se reorganiza descarnando feições democráticas de sociedades que se formaram presas do racismo e da violência como arma política

A diferença pode estar no grau de conflito da própria sociedade ao deparar-se com seus fantasmas autoritários. No caso brasileiro, o país ficou dividido entre o fanatismo em favor do recrudescimento  do regime e uma parcela em luta para barrar as ameaças antidemocráticas. Felizmente, para o Brasil, o segundo grupo saiu vitorioso nas eleições, mesmo ao preço de um balaio ideológico hoje no poder. Um preço válido quando se trata de barrar o avanço da extrema direita.

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O que se passa em Israel é a vitória do outro lado da moeda. Ou de uma moeda que só tem o outro lado para mostrar.

Vários governos sucessivos se formaram no Estado sionista nos últimos três anos, sempre com lideranças eleitas a partir da disputa sobre qual projeto conseguiria ser mais linha dura contra palestinos e “vencer” a guerra contra os habitantes originais da terra.

O retrato disso tem sido o de casas desmoronando sob ordens judiciais, deixando famílias sem teto, mas que não parecem comover senão os palestinos. Bairros são cercados e comunidades despejadas, e como disse um colono aos donos da casa que ele pretendia tomar em Sheikh Jarrah em 2021: “se não for eu, será outro”. E essa tornou-se a lógica da ocupação naturalizada pela justiça de Israel.

Não se ouviu falar em protestos iguais da sociedade sionista quando o Knesset aprovou a Lei Básica do Estado Nação  que declarou Israel um estado exclusivamente judeu e jogou palestinos para o lado de fora do que quer que essa lei signifique para israelenses. O privilégio aceito em meio ao inferno da vida palestina sob ocupação talvez explique a sensação de felicidade demonstrada no Relatório Mundial da Felicidade lançado esta semana pela ONU, em que israelenses passaram da 10ª para a 5ª posição entre os povos mais felizes do mundo em 2022.

Olhando de fora, toda essa felicidade também leva o nome de apartheid, reconhecido como tal por organizações como Anista Internacional e Human Rights Watch.

Um estado de apartheid é o avesso do que se entende por justiça, porque se apoia em um sistema de privilégios e exclusões sustentado pelo uso da força. A negação do outro foi bem sintetizada pelo ministro de extrema direita das Finanças Israel, Bezalel Smotrich, ao dizer que “não existe isso de um povo palestino” Por essa lógica totalitária, ser um colono armado e feliz em meio ao apartheid, e ainda protegido pelas forças de segurança quando invade uma mesquita islâmica, é parte da equação aceita e não um problema de justiça. É a expressão da democracia seletiva que Israel consegue vender como um sistema de autodefesa para o mundo.

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Mas agora esse sistema está mostrando rachaduras que vão alcançado uma fatia maior de vítimas, e israelenses  alertam que a própria constituição do Estado de Israel está sob ameaça porque acreditam que sua sustentação esteja na preservação de um judiciário estruturante de seu modelo de democracia. No entanto, com esse modelo em que a democracia é seletiva e a justiça é relativa, a sociedade israelense levou ao poder a expressão mais extremista do projeto sionista de negação do direito e da voz dos outros. A reforma do judiciário para dar ao primeiro-ministro o poder de controlar decisões da corte amplia essa negação para os que até agora se sentiam amparados pelo Estado e começam a temer ficar sob o alcance de um regime cada vez mais totalitário.

Tem um poema brasileiro atribuído erroneamente a Maiakovski que fala do risco de tornar-se vítima do próprio silêncio. Ou servir-se do próprio veneno.  É a história do invasor que entra em seu jardim, pisa em suas flores, mata seu cão, até finalmente entrar em sua casa e arrancar sua voz porque você silenciou durante todo tempo. Duro é precisar olhar no espelho e admitir que os pés no jardim também eram seus.

Para o mês do Ramadã, Israel e Autoridade Palestina fizeram um acordo de improvável cumprimento para acalmar as coisas e evitar violência. Porque já é esperado que novamente colonos e soldados façam provocações nos locais sagrados islâmicos e a resistência palestina reaja com seus próprios meios.  Sair às ruas defendendo a democracia para si enquanto as forças do Estado se lançam contra os palestinos é fechar os olhos para uma “justiça” de  apartheid cada vez mais visível no espelho feliz de Israel.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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