A trajetória de um tunisiano é o centro da pesquisa da brasileira Joyce Karine de Sá Souza . Ela está estudando o material produzido Mustapha Khayati, historiador da cultura, crítico social e ativista político, que integrou a Internacional Situacionista (IS). O movimento, como o nome diz, tinha um olhar sem fronteiras para o mundo, e foi fundado no final da década de 1950. A IS reuniu intelectuais e artistas críticos ao sistema capitalista posto, e cuja tarefa central era a construção de situações que propiciassem ambientes capazes de mudar isso.
A brasileira está, agora, mergulhando em documentos do autor arquivados da Biblioteca Beinecke de Manuscritos e Livros Raros da Universidade Yale, nos Estados Unidos. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Souza foi selecionada para uma das bolsas que a biblioteca oferece para pesquisadores. Em janeiro, ela começou sua jornada. Serão cinco meses – até maio – nos quais ela pode pesquisar no acervo da instituição. Depois disso, a estudiosa pretende desenvolver diferentes projetos ligados ao conteúdo encontrado por lá.
O interesse da pesquisadora pelo tunisiano começou ainda quando ela se aprofundava na Internacional Situacionista. “Sempre busquei fazer uma crítica radical às estruturas políticas, nesse sentido a IS foi a que me deu maior arcabouço para entender essa crítica”, afirmou ela. Souza lembra que o termo ‘radical’ vem da palavra ‘raiz’. “Ser radical é enfrentar o núcleo do problema, a raiz do problema”, explica ela.
A pesquisadora percebeu a falta de um destaque para a contribuição do árabe no movimento. “Apesar de ser um grupo com viés internacionalista, ele ficou conhecido por seus integrantes europeus. Eu via que a contribuição do Khayati é muito grande. A IS jamais seria o que é sem a contribuição dele. Ele está vivo, a gente conversa inclusive, por e-mail”, revelou a brasileira.
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O objetivo era trazer à luz o pensamento político teórico do pensador, demonstrando a importância dele para construir o que a IS é hoje. Para Souza, a obra do tunisiano pode, inclusive, ajudar a elaborar a própria história da América Latina. “Principalmente no Brasil, onde nós não acertamos nossas contas ainda com as nossas ditaduras”, apontou ela.
O material
Em 2019, quando a brasileira concluiu o Doutorado, passou a buscar mais materiais para estudar a obra de Khayati. “Na tese eu já o destacava dos demais. Meu plano era já me aprofundar nele. E vendo uma palestra do autor Kevin Repp, ele explicou como são os arquivos da IS na Yale e, como eu fiz muitas perguntas, ele me contou sobre a bolsa”, disse ela.
A bolsa de estudos era a da Biblioteca Beinecke, onde estão os arquivos de quase todos os situacionistas. Quando foi selecionada, a brasileira passou a estudar mais intensamente inglês e francês, este último o idioma principal em sua pesquisa. “Hoje, também estou lendo um pouco de árabe e pretendo me aprofundar mais, mas isso futuramente. Uma coisa por etapa”, contou.
Com tempo restrito, a brasileira decidiu se voltar para a coleta e digitalização de todo o material. “O interessante é que muitos textos da IS foram escritos sem autoria. O Mustapha é um dos únicos que mantém essa dimensão internacionalista, não sendo europeu”, explicou ela, que faz um trabalho de análise para identificar quais são as obras do tunisiano.
E, como para os situacionistas não há teoria sem prática, a pesquisadora conta que as obras são de formatos diversos. No montante de documentos do tunisiano, por exemplo, há livros de sua autoria, anotações de ideias para manuscritos, livros não publicados e até um roteiro de filme, além de correspondências que ele recebia de todo o mundo. Outro ponto importante da trajetória do autor foi o apoio à Frente Democrática para a Libertação da Palestina, recorte onde há mais escritos em árabe.
Nascido na Tunísia, em Soliman, Khayati ficou órfão e se mudou e estudou na França. A mudança, no entanto, não o impediu de trazer reflexões anticolonialistas para o movimento. “Principalmente nos países do Magrebe, se traz essa discussão para o sul global. Isso serve muito para fazer análise das dimensões totalitaristas que estão acontecendo na América Latina. Ele está às margens. E somente quem esta às margens consegue produzir um pensamento político de fronteira para dar esse substrato teórico e prático para combater os totalitarismo e autoritarismo que de tempos em tempos nos assolam”, reflete ela.
O futuro
A pesquisadora, que é colunista da editora Sob Influência, já terminou um primeiro artigo, que dá um panorama geral sobre a IS, e tem, agora, dois projetos de livros. “Em um eu fiz a tradução do francês para o inglês e vou fazer um estudo introdutório ilustrando com manuscritos e mostrando a história por trás [da IS]”, explicou ela. Os textos resultaram em ações e no panfleto ‘Da miséria no meio estudantil’. O objetivo do livro será mostrar os bastidores por trás da produção do panfleto, uma das obras onde o tunisiano não incluiu sua autoria. Com o material, a brasileira quer trazer o conteúdo e o pensamento do autor árabe para o público lusófono.
Outro projeto está sendo feito em parceria com outra pesquisadora. “Comecei a fazer quando descobri que tinha sido aprovada, comecei a correr atrás de outras pessoas que estavam na mesma temática, mas não são brasileiras. Eu falei com o El Hajoui, e ele me respondeu apresentando a Anna O’Meara. Estamos coletando entrevistas com os ex-situacionistas que ainda estão vivos e toparem participar. E com pessoas que foram influenciadas, como o filósofo Giorgio Agamben”, explicou ela.
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A brasileira frisa que o pensamento do autor ainda hoje influencia novas gerações. “O pegar pela raiz, do termo radical, é se aliando a povos que estão sendo massacrados, como os palestinos e curdos. Todo esforço que o Khayati fez em prol desses povos, em solidariedade… Acho que a palavra solidariedade define bem o Khayati”, concluiu ela.
Publicado originalmente em Anba