Há fotógrafas e fotógrafos que preferem o preto e branco e geralmente relacionam essa escolha com o melhor acento nas emoções. Ou com a perenidade. Sebastião Salgado diz que o preto e branco é atemporal e permanente, menos afetado pelo estilo de uma época. A cearense Karine Garcez tem algo da motivação para devendar realidades invisíveis de Dorothea Lange, que registrou a vida na miséria americana durante a grande depressão dos anos 30 do século passado e eternizou imagens como a de sua foto Mãe Migrante.
Karine não discute fotografia em seu livro Infância Refugiada – Retratos de um Conflito. Mas ela discute o foco de suas lentes que registram, em preto e branco, crianças em campos de refugiados do Oriente Médio. Conta apenas que, ao descobrir a fotografia, viu nela a imagem dos direitos humanos. Militante nessa área, foi a campo atrás do que não se vê nas tragédias humanas e olhou para as crianças arrastadas para a condição de refugiadas.
O Oriente Médio parece coalhado de campos de refugiados. Karine circulou por alguns para realizar seu trabalho. Encontrou crianças sobreviventes de deslocamentos e duras travessias, empurradas através de fronteiras, e “muitas vezes desacompanhadas e sem nenhuma documentação que as identifique”.
Karine deu-lhes o testemunho da existência, no encontro efêmero de sua realidade com o olhar e as lentes da fotógrafa e a permanência da fotografia. Seu livro traz uma coletânea de fotos de meninos e meninas que lançam nos olhos um questionamento sobre o mundo que construímos desde o momento em que elas olharam para sua câmera e também se viram e brincaram com suas fotos.
Podem ter sido crianças de quaisquer campos de refugiados. Podem ter passado ou mesmo já nascido refugiadas no campo de Jabaliya, na Faixa de Gaza, ou em Buri al-Baraineh, em Rashidieh ou Chatila, os três no Líbano. Estes não são os únicos campos no Oriente Médio. Ou no mundo. Mas são, em particular, os destinos de milhares de palestinos que foram expulsos no processo de limpeza étnica promovido por Israel e que acreditam, geração após geração desde 1948, no seu direito de retorno à terra hoje ocupada e sitiada pelo sistema de apartheid.
Campos de Refugiados, implantados em territórios de outras nações, têm em comum a dependência da ajuda internacional e o futuro comprometido da humanidade refugiada na imagem das crianças que tentam sobreviver. Elas estão ou estiveram em Za’atari, na Jordânia, o maior campo de refugiados sírios no mundo? Ou em Yarmouk na Síria, que já foi o maior campo de refugiados palestinos na Síria antes da guerra civil que novamente os expulsou? Ou de Rashidieh no Líbano, o segundo maior campo de refugiados palestinos no país?
Karine começou seu trabalho em Gaza, em 2012, fotografando as crianças na faixa atingida por ataques de Israel. Um ano antes, o Oriente Médio foi lugar da chamada Primavera Árabe, com a derrubada de governos na Tunísia e Egito e, em reação a isto, o início da repressão violenta à população que se levantava na Síria. Ainda viria o colapso da Líbia, sob intervenção da Europa, que ao mesmo tempo se recusava a receber seus refugiados que sucumbiam no Mediterrâneo. A década seguinte foi marcada por deslocamentos em massa para longe das guerras na região da África e Oriente Médio e para dentro de novas tragédias humanas.
É difícil para quem não viveu a experiência do refúgio em um campo imaginar como é a vida de milhares de pessoas que não são de lá e nem lhes é permitido que sejam. São territórios de passageiros sem permissão de voltar, nem destino certo para ir.
Muitos desses locais estão superlotados, com condições de vida insalubres e violência, o que aumenta o risco de doenças e violações de direitos humanos. Além disso, os refugiados frequentemente enfrentam dificuldades para acessar emprego e escola para as crianças, o que leva à dependência da ajuda humanitária e à falta de perspectivas de futuro.
Como explica Karine, os campos são locais de extrema vulnerabilidade em terra alheia, sem os mesmos direitos das populações locais, e ainda alvo de especuladores, de exploradores sexuais e do trabalho infantil.
Entre as crianças, “as sobreviventes levam consigo as consequências desses traumas tão profundos, ficando estigmatizadas e sofrendo xenofobia nos territórios onde conseguem se fixar”, explica a autora.
O escritor palestinos Ghassan Kanafani, ele mesmo um refugiado expulso de sua terra quando criança durante a Nakba, disse no livro “Homens ao Sol”, publicado em 1963, que “os traumas da infância nunca nos abandonam completamente. Eles permanecem conosco, como cicatrizes em nossas almas, moldando quem somos e quem podemos vir a ser.”
ASSISTA: Memo conversa com Karine Garcêz – Fotógrafa cearense Karine Garcêz
Mas crianças sonham e precisam brincar com a realidade que a vida lhes impõe. Como também diz Kanafani “A infância é um tesouro precioso que deve ser protegido e preservado a todo custo.”, porque essa fase da vida “não pode ser recuperada, mas podemos usá-la como inspiração para criar um futuro melhor.”
Karine registrou em preto e branco a beleza trágica da vida desabrochando em meio ao trauma do abandono, como se pudesse protegê-la da certeza dos transtornos capazes de acompanhar aquelas crianças pelo resto da vida. Mas todo resto sobre elas é interrogação. Como poderia a fotógrafa reeencontrá-las e completar o testemunho de suas histórias?
Em 2018, a fotógrafa voltou aos campos que visitou no Líbano, na tentativa de rever as crianças que havia fotografado. “Infelizmente, apenas encontrei uma família, de tantas que conheci.” Para onde foram todas? É presumível que tenham prosseguido na caminhada para outros destinos ou para a volta a lugares partenos dos quais não têm memória.
Embora muitas crianças passem anos expostas às condições do refúgio, os campos nunca são um ponto final de chegada. Dalí, quando saem, arriscam-se com suas famílias na perspectiva de o futuro que seja melhor. “Essas pessoas não se fixam em um local, até que encontrem segurança, em que os pais possam trabalhar, as crianças estudar”, diz Karine.
A fotógrafa encontrou uma família de palestinos nascidos na Síria, em trânsito na fronteira da Turquia, em Gaziantep,. O pai morrera. A mãe, imenenita, tentava chegar com o grupo no Iemen. E partiu com as crianças. À espera delas, estava um país mergulhado em conflito. Karina compartilha a pergunta que se faz sobre o destino daquelas pessoas. A família estará segura? Onde estarão as crianças?
As fotos de Infância Refugiada levam seus leitores e apreciadores de seu trabalho a uma empatia tardia com as personagens fotografadas. Remexe na consciência de que esses campos ainda estão lá, com outras crianças a incomodar o mundo com os mesmos questionamentos. Nelas, não há como não reconhecer naquelas fotos os semblantes vulneráveis e os sorrisos esperançosos que amamos e queremos proteger nas crianças a nossa volta.