A diplomacia internacional tem faces públicas e também as que emergem reveladas por vazamentos, delicadas investigações jornalísticas, ou relatadas somente após os fatos transcorridos por historiadores. Mas há também aquelas relações que procuram visibilidade e podem contribuir para a solução de crises internacionais, mas são ignoradas ou deturpadas porque a narrativa ocidental prefere ocultar.
A visita do intelectual Daud Abdullah ao Brasil, com passagens, aulas e lançamentos na Bahia e em São Paulo, produziu interesse político e acadêmico entre diferentes públicos, mas também sentimentos conflitantes sobre o que se deduz pela mídia sobre a resistência palestina aos ataques e avanços da ocupação israelense. O tema explorado em seu livro “Engajando o Mundo – A construção da política externa do Hamas” (Editora MEMO, 2023) e sua abordagem do movimento de resistência islâmica sob um olhar para as relações diplomáticas é algo novo na literatura política sobre as questões palestinas. “Como esse movimento armado pode contribuir para a paz? Deixará essa opção pela violência?”, perguntou um professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Qual o limite do Hamas? Até onde chegará com sua luta?”, indagou uma professora da Faculdade de Comunicação e Tecnologia (FAPCOM), de São Paulo.
Mesmo para alunos de Relações Internacionais e ativistas de organizações sociais, que olham criticamente para o noticiário sobre Palestina e Israel, o livro e as palestras trouxeram uma sucessão de histórias pouco conhecidas sobre uma vida diplomática que se desenvolve a partir da Faixa de Gaza e os diálogos internacionais do movimento de resistência islâmica.
Abdullah identificou o vazio de informações e de acesso a fontes primárias sobre as vivências e estratégias do movimento e realizou uma série de entrevistas com altos dirigentes da organização, além de políticos, pesquisadores e lideranças, para aproximar seus leitores de uma realidade cercada de ataques e reações armadas, que extrapola, porém, as cercas de Gaza. Sua pesquisa também recorreu a informações importantes reveladas nos inúmeros documentos trazidos à luz por Julian Assange, hoje na prisão.
“Entrevistei diretamente líderes de alto escalão do movimento. Outras importantes fontes primárias foram os documentos do Wikileaks. Esses conteúdos mostraram relações de diversos governos e embaixadas, como Rússia, Estados Unidos e Turquia, que são agentes importantes na questão palestina, junto ao Hamas. E até hoje os Estados Unidos perseguem Assange por causa do vazamento desses documentos.” Daud Abullah
Nascido da Primeira Intifada – levante palestino de 1987 contra a ocupação israelense, que durou cinco anos de lutas e perdas –, o Hamas tornou-se uma força visada logo em seus primórdios, seja por seus posicionamentos em questões externas, como no caso invasão do Kuwait pelo Iraque em 1991 – que o movimento condenou, ao contrário do apoio a Saddam Hussein concedido pela Organização pela Libertação da Palestina (OLP), de Yasser Arafat –, seja por sua resistência ativa contra Israel. Vários momentos inseriram a organização na cena internacional, em muitos deles de forma dramática, como expõe o escritor.
Um dos episódios marcantes que revelaram a determinação do Hamas – e ao mesmo tempo a insanidade da ocupação – ocorreu em 1992, com a captura, prisão e expulsão de 415 membros do movimento em uma operação inacreditável. “Palestinos vendados e algemados foram levados em ônibus para a fronteira com o Líbano e deixados em Marj az Zuhur, com a ordem para seguir ao norte, em direção a Beirute. Eles se recusaram e permaneceram ali, nas montanhas geladas, só com a roupa do corpo e resistiram”, recordou Daud. O fato chamou a atenção das entidades internacionais, à medida que o Hamas conseguiu denunciá-lo e, ao mesmo, mostrar a razão de ser de seu movimento. A crueldade da operação israelense gerou protestos e levou inclusive a Cruz Vermelha a se mobilizar para enviar tendas e ajuda aos homens sem alimento, cercados na região de fronteira. A mídia expôs o espetáculo desumano de indivíduos vendados sendo conduzidos a lugar nenhum.
“Imagens angustiantes de profissionais – professores universitários, estudantes, médicos e engenheiros – com os olhos vendados e algemados nas montanhas geladas chamaram a atenção do mundo”, relata Daud. Imagine uma entrevista do Hamas concedida diretamente da remota Marj az Zuhur, mostrando essa história em plena noite de Natal, transmitida pela agência de notícias CNN.
O fato é contado em detalhes no livro de Abdullah, assim como passagens posteriores que desmontam a ideia de um grupo isolado, espremido entre cercas, raivoso e extremista, disparando foguetes. A construção oportunista dessa imagem foi algo enfatizado pelos dois acadêmicos de São Paulo que participaram do lançamento do livro na Faculdade de Comunicação e Tecnologia (FAPCOM) na terça-feira (23). A professora de História Árabe e História Palestina do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (USP), Arlene Clemesha, vê o movimento como a maior força de resistência palestina, atacada justamente por isso, e o professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica (PUC), Bruno Huberman, enxerga nele um processo de aprendizado com os próprios erros e a busca de equilíbrio entre seu idealismo de base e o pragmatismo com que precisa se relacionar com outros governos.
RESENHA: Um livro para conhecer a política externa do Hamas
“A representação que se tenta construir sobre o Hamas é de que são pessoas extremamente idealistas, comprometidas até o fim, e que esse ideal é, em última instância, assassino porque teria no Islã, em certo sentido, uma representação fundamentalista que faria deles bárbaros e terroristas. O Hamas, contudo, é um movimento político que aprende com as licões históricas do movimento palestino. E o livro de Daud permite contato com essa trajetória.” Bruno Huberman
A imagem bárbara do movimento foi reforçada em 1993, ano em que foram assinados os Acordos de Oslo, que culminaram na classificação do Hamas como um “grupo terrorista” pelos Estados Unidos e aliados, justamente por ser avesso ao pacto e até hoje denunciá-los.
“O processo de Oslo foi uma grande armadilha aos palestinos. A solução de dois estados está morta, não tem mais como ser realizada, mas alguns países continuam falando do apoio à solução de dois estados. Ninguém mais sabe o que significa isso. Qualquer analista, intelectual ou acadêmico palestino insiste há tempos que não há mais como se realizar a solução de dois estados.” Arlene Clemesha
O Hamas, além de movimento de resistência islâmica, é um partido político que buscou a via institucional e que concorreu e venceu as eleições ao Conselho Legislativo em 2006, o que lhe permitiria, em tese, formar o governo da Palestina. Essa conquista, no entanto, lhe foi negada e qualquer coalizão que o incluísse deixaria de receber os fundos para o funcionamento da Autoridade Palestina. Abdullah destacou a similaridade com o que aconteceu no Chile em 1973 – fato mais conhecido dos brasileiros –, quando o socialista Salvador Allende venceu as eleições, mas foi deposto por um golpe orquestrado pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), liderado pelo general e então ditador Augusto Pinochet.
No caso da Palestina, o golpe foi orientado por Condoleezza Rice, secretária de Estado do governo de George W. Bush, provocando uma divisão das forças palestinas que se reflete até hoje na existência de duas administrações distintas: um governo de resistência da Faixa de Gaza sitiada, sob o Hamas; outro na Cisjordânia, em coordenação de segurança com a ocupação israelense, sob o partido Fatah no comando da Autoridade Palestina.
“O resultado eleitoral não foi reconhecido pelos Estados Unidos, União Europeia e Israel. Foi por causa da característica islâmica do Hamas? Sinceramente, acredito que não. Mas sim porque o Hamas representa uma força importante da resistência palestina. Também não cabe classificá-lo como terrorista por resistir ao ocupante. O movimento não atua com atentados contra populações em outros países, mas faz resistência dentro do território palestino, justamente para libertar esse território da ocupação israelense. Portanto, quem está lançando foguetes e bombas é Israel” Arlene Clemesha
Daud Abdullah, em várias ocasiões no Brasil, como no evento de lançamento promovido pela Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), Centro Cultural Islâmico da Bahia, Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN) e associação VIDA Brasil, em Salvador, chamou atenção para o processo de mudança que incorre aos países do Sul Global – do Brasil à Malásia –, como nova força ascendente na ordem mundial. A grande adesão de novos países ao bloco do BRICS – originalmente formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – demonstra esse rearranjo em curso. O movimento coloca em questão o funcionamento ineficaz da Organização das Nações Unidas (ONU) e seu Conselho de Segurança, assim como aumenta a pressão para que o Tribunal Penal Internacional (TPI), a despeito da pressão dos Estados Unidos, venha a julgar de fato os crimes da ocupação israelense.
Nesse ambiente, forças sociais internas aos países do Sul também pressionam para acelerar tais mudanças. Daud Abullah esteve no Brasil precisamente no período de aniversário da Nakba, quando os 75 anos da ocupação israelense e as denúncias do sistema de apartheid contra palestinos ficam mais latentes. Enquanto lançava o livro “Engajando o mundo …” em São Paulo, organizações sociais e sindicais brasileiras escreviam ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva reivindicando a revisão dos acordos com Israel, fidelidade à “política externa ativa e altiva” do Estado brasileiro e protagonismo para “denunciar e liderar a comunidade internacional ao exercer medidas efetivas contra o regime de apartheid do Estado israelense, a partir da reativação do Comitê Especial das Nações Unidas contra o Apartheid.” Os fatos mostram como a discussão da política externa dos governos ganha espaço cada vez maior na agenda dos movimentos da sociedade civil internacional.
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