A mais recente turnê do célebre cantor e compositor Roger Waters, de 79 anos, voltou a causar polêmica. Entretanto, os novos 15 minutos de fama de Waters, dessa vez, não se referem a sua arte, mas sim a seu “cancelamento”.
A polêmica gira em torno das posições políticas de Roger Waters. O cofundador do Pink Floyd sofre há anos uma campanha de difamação que tenta descrevê-lo como “antissemita” e, mais recentemente, “apologista” do presidente da Rússia, Vladimir Putin. De fato, algumas de suas posições enfureceram diversas forças políticas. Por exemplo, Waters rechaçou abertamente a invasão russa contra a Ucrânia, mas negou que a escalada não fora provocada. Tais pontos de vista levaram ao cancelamento de seus concertos na Polônia.
Waters venceu uma árdua batalha legal para realizar seu show na cidade alemã de Frankfurt, sob alegações de “antissemitismo” – que ele desmente com vigor. Uma campanha foi travada contra ele por vereadores da cidade polonesa de Cracóvia, lideranças da polícia municipal de Berlim e mesmo deputados do Partido Trabalhista do Reino Unido. Todos eles se juntaram ao coro enfurecido contra Waters, ao ponto de caluniá-lo como simpatizante do nazismo.
A primeira salva de críticas eclodiu da objeção do artista ao envolvimento dos Estados Unidos na guerra na Ucrânia e sua recusa em se juntar aos refrões reverberados na imprensa sobre o assunto.
Em carta aberta encaminhada à primeira-dama ucraniana, Olena Zelenska, Waters descreveu o envio de armas ocidentais ao país como “tentar apagar um incêndio com gasolina”. Após duras críticas, Waters emitiu também uma carta aberta ao presidente russo, Vladimir Putin: “Pare de jogar este perigoso e desesperado jogo de gato e rato nuclear, com o qual abutres de ambos os lados do Atlântico parecem se sentir tão confortáveis”.
Se concordamos ou divergimos de Waters e suas posições políticas, vale o debate, mas pouco importa. Está claro que a chamada “cultura de cancelamento” perdeu a mão no Ocidente. Em setembro de 2022, a prefeitura de Cracóvia proclamou o renomado artista como persona non grata, ao empregar como pretexto sua carta a Olena Zelenska. Como resultado, seus concertos na cidade polonesa – parte da turnê internacional “This is Not a Drill” (“Isso não é um teste”) – foram desmarcados.
As coisas, porém, não pararam aí. Recentemente, a polícia de Berlim abriu uma investigação contra Waters por usar um figurino semelhante a um uniforme nazista durante um show na Arena Mercedes Benz. Waters realizou seu concerto em Frankfurt sob ameaças de que suas performances futuras fossem canceladas. Neste entremeio, deputados trabalhistas do Reino Unido divulgaram uma série de apelos para censurar os shows de Roger Waters em sua terra natal, marcados para junho. O parlamentar Christian Wakeford acusou o artista, durante um show em Berlim, de “usar o nome de Anne Frank para alimentar a divisão, enquanto vestido como um soldado da polícia nazista”.
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A comparação de Waters entre a adolescente vítima do Holocausto com as crianças mortas pela ocupação israelense e, em particular, com a execução da jornalista palestino-americana Shireen Abu Akleh, durante uma incursão militar sionista na Cisjordânia, provocou controvérsia. A conta oficial do Estado de Israel no Twitter afirmou: “Bom dia a todos, exceto ao Sr. Roger Waters, que passou sua noite em Berlim – sim, em Berlim – profanando a memória de Anne Frank e dos seis milhões de judeus assassinados pelo Holocausto”.
Embora a polícia de Berlim tenha decidido apenas agora investigar o artista por seu “uniforme nazista”, é essencial saber que, de longe, não é a primeira vez que Roger Waters usa o figurino no palco. Em 1990, durante um concerto em Berlim, parte das comemorações da reunificação da Alemanha, quem sabe um dos shows mais célebres de sua carreira, Waters usou a mesma roupa. Enquanto tocavam a canção “In the Flesh”, do álbum conceitual “The Wall” (1979), os membros da banda acompanharam Waters em sua vestimenta, quase idêntica ao “uniforme nazista” utilizado na última turnê.
“The Wall” aborda diversos temas, incluindo fascismo e guerra. Trata-se da história de um menino que perdeu o pai na Segunda Guerra Mundial. O menino é Roger Waters, cujo pai faleceu apenas cinco meses após nascer seu filho. Este contexto explica melhor o enorme simbolismo do concerto de 1990, logo após a queda do Muro de Berlim – um dos legados materiais mais evocativos do nazi-fascismo e da Segunda Guerra Mundial.
Sobre Anne Frank e Abu Akleh, um dos temas da turnê de Waters, que projeta ambos os nomes em um telão, é a violência de Estado. Em seu concerto mais recente, outros nomes também são projetados, incluindo Mahsa Amini, morta em custódia da polícia iraniana.
O entusiasmo do show em Berlim de 1990 contrasta drasticamente com os humores de 2023.
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A tolerância, introspecção e reflexão aberta de três décadas atrás aparentemente deu lugar a intolerância, puritanismo e “cancelamento” nos anos recentes.
Ser acusado de “antissemitismo” não é novidade a Roger Waters ou outros ativistas de direitos humanos que voltaram sua atenção ao contexto de ocupação colonial e apartheid na Palestina histórica. Não obstante, o ímpeto da grande imprensa e de figuras políticas contra discursos de oposição atingiu níveis sem precedentes. Esta história inacreditável, quase tragicômica, revela a atrofia cada vez maior do que se permite debater na arena pública.
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