O ativista e romancista palestino Ghassan Kanafani foi morto em Beirute, capital do Líbano, por uma bomba plantada em seu carro pela agência de espionagem israelense Mossad, em 8 de julho de 1972. Kanafani tinha 36 anos. Seus escritos, porém, sobrevivem entre as obras mais influentes da literatura nacional palestina e do modernismo árabe de forma geral. Seus livros foram traduzidos a 17 idiomas e publicados em 20 países.
Segundo Israel, Kanafani foi assassinado em resposta a um ataque ao aeroporto de Lod, dois meses antes, muito embora não estivesse envolvido. A operação de resistência foi conduzida por membros do Exército Vermelho Japonês, recrutados pela Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP), organização marxista fundada pelo revolucionário George Habash após a guerra de 1967. Kanafani era porta-voz da Frente Popular na época.
Ghassan Kanafani era refugiado, jornalista, editor e ativista político. Sobretudo, no entanto, era escritor – “um combatente que jamais disparou uma arma, cujo revólver era a caneta e cujo campo de batalha eram as páginas de jornais”, segundo obituário publicado pelo jornal libanês Daily Star.
Nascido em 8 de abril de 1936 em Acre, no norte do país – então sob Mandato Britânico –, Kanafani e sua família foram forçados ao exílio junto de centenas de milhares de palestinos durante a Nakba, ou “catástrofe”, em 1948. A família se assentou em Damasco com outros refugiados. Kanafani completou seu ensino médio na capital síria, onde passou a trabalhar como professor de arte nas instituições da Agência das Nações Unidas para Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA). Nesta época, começou a escrever contos.
LEIA: Ghassan Kanafani – Anticolonialismo e alternativa socialista na Palestina
Na Universidade de Damasco, Kanafani estudou literatura árabe. No entanto, foi expulso por a suas relações com o Movimento Árabe-nacionalista (MAN) – organização panárabe que se tornaria mais tarde a Frente Popular – e jamais conseguiu se graduar.
Ao se mudar para o Kuwait, em 1956, Kanafani trabalhou como professor, jornalista e editor do jornal Al-Ra’i (A Opinião), associado ao MAN. Em 1960, em Beirute, tornou-se editor do jornal Al-Hurriya (Liberdade), também ligado ao movimento político.
Kanafani logo começou a publicar suas histórias, interligando arte e ativismo. De acordo com sua irmã, Fayzeh, na véspera de seu assassinato, sua filha, Lamees, pediu ao tio que deixasse a militância e se concentrasse no romance. Lamees, de 17 anos, estava no carro junto do tio Kanafani quando detonou a bomba. Segundo o relato, comentou a sobrinha: “Suas histórias são lindas”. Kanafani redarguiu: “Escrevo bem porque acredito na causa, porque acredito em princípios. O dia que deixá-los, minhas histórias se esvaziam. Se eu os deixasse de lado, você mesma não me respeitaria”. Conforme Fayzeh: “Foi assim que ele convenceu sua sobrinha de que a luta e a defesa dos princípios eram a razão do sucesso em tudo na vida”.
De fato, seus escritos exploram questões políticas complexas por meio de uma prosa lírica e de uma profunda técnica narrativa. Em 1962, Kanafani publicou sua novela Homens ao Sol, sob aclamação da crítica. Seu livro conta a história de três refugiados palestinos de gerações distintas que tentam cruzar a fronteira iraquiana rumo ao Kuwait, na esperança de encontrar trabalho. A história termina em tragédia quando os refugiados se escondem em uma caixa d’água, após atravessarem a fronteira. A sentença final é aterradora: “Porque não bateram nas paredes?” – sugerindo, portanto: pereceram não devido ao calor do deserto, mas sim devido a seu silêncio. Para muitos, a novela inaugural de Kanafani se encerra como crítica ao derrotismo árabe e um apelo para que “batam na parede”.
A Guerra dos Seis Dias foi um ponto de virada proeminente na carreira política e literária de Kanafani. O pessimismo marcante de suas primeiras obras se converteu na busca ativa por um caminho de luta.
LEIA: Ghassan Kanafani, o mártir palestino que uniu a caneta e o fuzil
Seu romance Retorno a Haifa, de 1970, se passa no período posterior à guerra e tem como protagonistas Sa’id e Safiyya, um casal palestino que busca retornar a seu lar na cidade, após serem expulsos em 1948. Ambos buscam seu filho, Khaldun, deixado para trás na ocasião da Nakba, e encontram Miriam, uma sobrevivente do Holocausto, residindo em sua casa. Seu filho é criado por Miriam como um judeu israelense; serve o exército e atende pelo nome de “Dov”. Khaldun – ou Dov – contrasta com seu outro filho, Khalid, combatente da resistência palestina pelos Fedayeen. Sa’id havia proibido o filho de se alistar; contudo, após regressar a Haifa, lhe dá sua bênção. Kanafani ressoa em sua narrativa o chamado à resistência armada, enquanto questiona os próprios fundamentos de conceitos como “lar” e “família”.
Como pioneiro da literatura de resistência palestina – até mesmo responsável por cunhar o termo –, Kanafani sempre defendeu que a arte estaria interligada intimamente à luta contra a opressão em todas as suas formas, um tema comum a outros escritores palestinos, como o poeta Mahmoud Darwish. Esta modalidade literária também exerceu um papel importante em manter viva a identidade palestina, sobretudo entre 1948 e 1967, quando a organização pela resistência nacional ainda era bastante incipiente. “A literatura de resistência palestina, assim como a resistência armada, compõe um novo ciclo nas séries históricas praticamente impávidas ao longo dos últimos cinquenta anos da vida palestina”, escreveu Kanafani.
Após a guerra, Kanafani se juntou à Frente Popular como porta-voz oficial. Dois anos depois, pediu demissão de seu cargo de editor no jornal nasserista Al-Anwar (A Iluminação) para fundar o Al-Hadaf (O Objetivo), da Frente Popular, que editou até seu assassinato. As’ad Abu Khalil, professor da Universidade do Estado da Califórnia, destacou o impacto do jornal: “Kanafani fez das ideias árabe-marxistas parte da moda, ao combinar arte e literatura, em nome da libertação da Palestina”.
Quase meio século após seu assassinato, as obras e os pontos de vista de Ghassan Kanafani continuam vivos, à medida que suas ideias ainda inspiram jovens árabes nas escolas e nas ruas. Na Academia Real da Jordânia, por exemplo, todos os estudantes do ensino médio têm de ler Homens ao Sol e Retorno a Haifa como parte do curso “Literatura Árabe no Contexto Global”. As aulas exploram temas de identidade, perda e resistência.
As ideias de Kanafani sobre o que é ser palestino são lições essenciais a todos, ao construir os alicerces do debate político e filosófico sobre a resistência em todo o mundo, desde a luta contra a ditadura de Muamar Qaddafi na Líbia à busca por igualdade de gênero na Nigéria, entre muitas outras. Como disse Kanafani: “A causa palestina não é apenas dos palestinos, é uma causa de todos os revolucionários … das massas oprimidas e exploradas de nossa era”.
LEIA: Uma guerra secular: a luta de classes na Palestina e os ‘três inimigos distintos’