Nos esportes, mulheres não são mero troféu de representatividade, é preciso ir além

Atleta palestina Honey Thaljieh, primeira mulher árabe a obter um mestrado da FIFA [FIFA]

Ao chutar uma bola pela primeira vez nas vielas de Belém junto dos meninos da vizinhança, Honey Thaljieh, então com sete anos de idade, jamais sonhou em fazer história. Ainda assim, doze anos depois, em 2003, como estudante da Universidade de Belém, Honey participou da criação da Seleção de Futebol Feminino da Palestina. Em 2012, tornou-se a primeira mulher árabe a obter um mestrado da FIFA e trabalhar para o órgão.

Mesmo diante de sucessivos obstáculos e armadilhas postos no caminho por estereótipos de gênero e o conservadorismo patriarcal, Honey jamais pensou em desistir.

“Eu não tinha opção. Cresci em circunstâncias muito difíceis. Éramos cinco e meus pais não poderiam arcar com nada exceto educação. Tenho dois irmãos e duas irmãs. Eu mesma não tinha muito com o que brincar quando criança. Então, minha única opção era jogar bola com os meninos na rua”, recorda Honey.

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Honey afirma que jogar com meninos de sua idade ou mais velhos e marcar gols nos campos improvisados da cidade de Belém lhe deu força, caráter e cada vez mais determinação para vencer e desenvolver novos espaços para meninas e mulheres no esporte, frequentemente dominados pelos homens.

No instante em que seu pé tocou a bola de futebol pela primeira vez, sob olhares e passes hesitantes dos meninos, Honey driblou toda a rua, com controle e velocidade incríveis, para marcar um gol atrás do outro com a maior facilidade. Seus movimentos foram espontâneos e instintivos, relembra a atleta.

“Eu descobri que sabia correr, driblar e dominar a bola muito bem. No começo, os meninos não queriam me passar a bola porque eu era a única menina, mas quando viram que eu era boa assim, começaram a brigar para que eu jogasse no time deles”.

O futebol sob ocupação não é algo simples. Contudo, a descoberta de seu talento natural e sua intimidade com a bola foi um sopro de ar fresco diante dos empecilhos cotidianos e das diversas restrições impostas pelas forças militares de Israel.

Como outras cidades e aldeias na Cisjordânia ocupada, a cidade antiga de Belém é cercada por assentamentos ilegais e pelo Muro do Apartheid, deixando os residentes sob constante vigilância e assédio de soldados e colonos israelenses. As restrições fazem com que a equipe de futebol feminino raramente consiga treinar adequadamente como um coletivo.

Honey – que descreve seus laços afetivos com o futebol como eternos – trabalha hoje para o Alto Conselho de Juventude e Esportes do Estado da Palestina e é gerente de comunicação para Projetos Especiais da Federação Internacional de Futebol (FIFA). Sua atribuição envolve promover iniciativas de igualdade de gênero, educação e paz por meio do esporte. Honey é reconhecida ainda como Campeã da Paz pela organização Paz e Esporte (Peace and Sport), além de embaixadora de diversas entidades sociais e desportivas, incluindo o clube Atlético de Bilbao, a partir deste ano.

“É claro, me sinto muito honrada com todos esses títulos, mas nada disso foi sorte ou acaso. Enfrentei inúmeros desafios e trabalhei duro para chegar onde estou hoje. E é uma enorme responsabilidade manter meus objetivos em xeque e avançar em tudo aquilo que conquistei através de meu trabalho, dando um bom exemplo para meninos e meninas de meu país e de todo o mundo. Na verdade, quanto mais títulos eu tenho, maior a responsabilidade”.

Honey manteve seu trabalho árduo fora dos campos após uma série de lesões sofridas em 2009 encerrar sua carreira como atacante – evento que ela descreve como o mais doloroso de sua vida. “Mesmo depois das minhas lesões, eu sabia que não poderia desistir do futebol porque o esporte é minha vida. Mais do que isso, eu queria ir além da Palestina e mostrar ao mundo uma história diferente sobre meu país e meu povo, em particular, sobre as mulheres palestinas, todas imensamente capazes de viver sua vida em pleno potencial, caso queiram jogar bola e seguir uma carreira no futebol”.

“Futebol é fair play e abre portas para oportunidades em todo o mundo, o que me permitiu começar um mestrado em gestão esportiva junto à FIFA, após ser escolhida como estagiária entre outras 33 candidatas à vaga”.

Muitos desabariam sob pressão, mas Honey continua apaixonada pela complexidade de seu papel e pelas possibilidades infinitas de construir um mundo mais justo e acessível.

“O que me motiva é minha autenticidade, a chance de ousar ser quem eu sou para fazer o que for preciso, não importa como as pessoas tentam me definir. Como uma mulher árabe e palestina vivendo no mundo de hoje, trabalhando na Europa, me recuso a aceitar qualquer preconceito que o mundo tente impor sobre pessoas como nós”.

Quanto ao papel de sua identidade nacional, étnica e religiosa em sua personalidade e suas experiências, Honey – cristã palestina de Belém – insiste que o que deve decidir o sucesso na carreira é a qualificação e o talento individual em campo.

“Precisamos sim ser inclusivos e ter cada vez mais mulheres experientes e qualificadas. Isso não significa, porém, que devemos agregar mulheres como mera formalidade, como apenas um troféu de representatividade”, argumenta Honey. “É preciso nos respeitar porque temos especialistas em diversas áreas e há muitas mulheres talentosas à espera de oportunidades, o que é justamente o meu trabalho”.

“A mentalidade das entidades é tão fixada nesse um único caminho porque até hoje, desde sua fundação, são todas predominantemente masculinas. São diretores homens, gerentes e líderes de equipe homens e assim por diante, e precisamos ver mais e mais mulheres nessas posições porque serão elas que terão os olhos e as portas abertas para dar oportunidades a mais e mais mulheres qualificadas”.

Com a Copa do Mundo de Futebol Feminina de 2023 a apenas algumas semanas do jogo de abertura, Honey reconhece que o comportamento e a visão sobre as mulheres nos esportes está mudando até certo ponto, em direção a algumas atitudes mais progressistas em termos de visibilidade, investimentos e remuneração a atletas femininas. A Copa do Mundo deste ano será realizada por Austrália e Nova Zelândia, entre 20 de julho e 20 de agosto.

Honey ajudou a fundar a Conferência Anual da FIFA por Igualdade e Inclusão, ao monitorar uma série de projetos de desenvolvimento social em torneios internacionais dedicados aos jovens e a comunidades marginalizadas – entre os quais, a Copa do Mundo dos Sem-Teto.

Honey agradece sua mãe por sempre apoiar seu sonho, desde os sete anos de idade. “Se houvesse qualquer discussão em nossa comunidade sobre uma menina jogando bola, minha mãe estava lá para me defender, daquele jeito tímido dela, e me dar força para caminhar adiante”, recorda Honey. “Sem o apoio da minha mãe, jamais poderia superar os desafios e chegar onde cheguei”.

“As coisas estão mudando e fico feliz em ser parte da mudança”, conclui a atleta. “Em escala internacional, entretanto, precisamos chegar ao ponto onde sequer é preciso mencionar que somos uma minoria para sermos reconhecidas. Temos o direito de sentir que nosso talento, nossa qualificação e nossas experiências de vida são suficientes para chegar nas posições de destaque – assim como os homens. Vou continuar a trabalhar duro e usar minha plataforma na FIFA para que todas nós cheguemos lá”.

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