“Essa cena horrível vai me assombrar para sempre”

Confrontos entre as Forças Armadas do Sudão e as Forças de Suporte Rápido (FSR) em Cartum, 5 de maio de 2023 [Ahmed Satti/Agência Anadolu]

Desde o dia 15 de abril, diferentes estados do Sudão foram afetados por intensos conflitos, pela escalada da violência e pelo acesso limitado a cuidados de saúde e recursos essenciais. Isso afetou drasticamente a vida de milhões de pessoas, provocou o deslocamento e o fluxo de refugiados nos países vizinhos em busca de segurança.

De acordo com a Agência da ONU para Refugiados (Acnur), o Sudão acolhe uma das maiores populações de refugiados na África – 39% deles vivem em campos para refugiados, particularmente no Sudão Oriental e no estado do Nilo Branco, enquanto 61% vivem fora deles, em assentamentos, comunidades anfitriãs ou nas áreas urbanas.

Salim* e Qamar* são da Etiópia e foram viver no Sudão com os quatro filhos para fugir da violência em sua terra natal. Quando os conflitos começaram, em abril, eles viviam em Cartum, capital do Sudão. Desde então, a família enfrentou uma viagem bastante arriscada para chegar ao campo de refugiados de Um Rakuba. Estes são seus relatos.

O início no Sudão

“O nosso local de entrada no Sudão, em novembro de 2020, foi o centro de acolhimento de refugiados em Hamadayet, situado na fronteira entre o Sudão e a Etiópia. De lá, fomos transferidos para o campo de refugiados de Um Rakuba. Embora tentássemos nos adaptar à vida no acampamento, as circunstâncias pioraram quando nossa barraca pegou fogo, destruindo toda a nossa comida e as roupas de nossos filhos. Então tomamos a decisão de deixar o acampamento e viajar para Cartum. Levei meus filhos e acompanhei meu marido para iniciar sua jornada de tratamento para doenças cardíacas “, contou Qamar.

Foi triste pensar que eu tinha fugido do meu próprio país por causa da guerra, e ter que enfrentar a possibilidade de morrer no país onde me refugiei.”

– Salim, refugiado etíope no Sudão.

Fugir da violência em Tigray, na Etiópia, não garantiu à família uma vida em segurança. Quando o atual conflito no Sudão teve início, em abril, eles não imaginavam que seriam afetados por outra onda de violência. Salim recorda os detalhes da fuga de Cartum:

“Na manhã de 15 de abril, começaram os sons de tiros e dos confrontos. Eu estava do lado de fora da nossa casa e voltei para dentro às pressas. A intensidade dos combates entre as Forças de Apoio Rápido (RSF) e as Forças Armadas Sudanesas (SAF) era esmagadora. A batalha ocorreu na rua em frente à nossa casa, com bombas caindo nas casas vizinhas. O ar estava carregado com o barulho ensurdecedor de aviões de guerra e explosões. Busquei refúgio, enquanto meus filhos se escondiam debaixo da cama. Foi triste pensar que eu tinha fugido do meu próprio país por causa da guerra, e ter que enfrentar a possibilidade de morrer no país onde me refugiei”, diz Salim.

Garanti a eles que éramos refugiados e simplesmente desejávamos viver em paz com nossos filhos.”– Salim, refugiado etíope no Sudão.

 

 

 

A família reunida em Um Rakuba, acampamento de refugiados no Sudão. [MSF]

“Quinze dias depois, nossos estoques de comida estavam esgotados e ficamos sem dinheiro. Quase todos os nossos vizinhos deixaram Cartum. Um deles, ao saber de nossa terrível situação, nos ajudou a chegar à rodoviária e até cobriu o custo de nossas passagens para Wad Madani. Quando partimos, testemunhei a fumaça subindo e prédios envoltos em chamas. Essa cena horrível vai me assombrar para sempre.

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Pela estrada, encontramos homens armados em um posto de controle que nos perguntaram se estávamos armados. Garanti a eles que éramos refugiados e simplesmente desejávamos viver em paz com nossos filhos. Eles nos deixaram passar, mas nós trememos de medo”, lembra Salim.

Chorei junto com meus irmãos porque o som das bombas era muito assustador.”– Mondi*, de 11 anos de idade.

Uma das crianças do casal, Mondi, de 11 anos de idade, tem uma perspectiva muito particular sobre o impacto do conflito no Sudão:

“Eu estava me preparando para ir à escola quando vi minha mãe aterrorizada, pedindo para nos escondermos debaixo da cama. Chorei junto com meus irmãos porque o som das bombas era muito assustador. Não gosto da guerra porque me deixou com muita fome. Meu pai não podia comprar comida para nós. Eu não quero voltar lá, eles fizeram meus irmãos chorarem.”

Essas palavras destacam o profundo medo e trauma vividos por crianças que testemunham e suportam as consequências do conflito.

Ao sair de Cartum, a família passou 11 dias em Wad Madani e se acomodou temporariamente em uma escola que carecia de serviços básicos. Sem dinheiro para o transporte até Um Rakuba, no estado de Al-Gedaref, eles lutaram para conseguir comida para os quatro filhos. Outras famílias forneceram a eles as passagens para viajar para o acampamento de Um Rakuba.

No estado de Al-Gedaref, Médicos Sem Fronteiras (MSF) administra hospitais nos campos de refugiados de Um Rakuba e de Tanedba. Os hospitais também prestam cuidados a um número significativo de pacientes das comunidades que acolhem as pessoas refugiadas. Antes do conflito atual, no hospital Um Rakuba, a maioria das internações no centro de alimentação terapêutica era de pacientes dessa comunidade.

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Nos últimos anos, no campo de Um Rakuba, nossas equipes têm fornecido acesso a cuidados médicos primários, secundários e de emergência. Nossos serviços no local incluem apoio ambulatorial e hospitalar pediátrico, além dos centros terapêuticos de alimentação e transfusão de sangue. Também fornecemos encaminhamentos para instalações de saúde secundárias e terciárias, bem como para serviços de saúde mental.

Viemos salvar nossas vidas e proteger nossos filhos.”– Salim, refugiado etíope no Sudão.

“Assim que cheguei ao campo de Um Rakuba, levei meus filhos ao hospital de Médicos Sem Fronteiras para tratamento contra doenças de pele e diarreia que contraíram durante nossa fuga de Cartum”, conta Salim.

“Não tenho abrigo, comida ou qualquer coisa aqui. Conto com a ajuda de meus parentes entre os refugiados no campo. Apelamos a outras organizações para nos ajudar. Não temos nada. Viemos para o Sudão não por trabalho ou por dinheiro. Viemos salvar nossas vidas e proteger nossos filhos”.

MSF trabalha ativamente no campo de Um Rakuba desde 2020, fornecendo apoio vital aos refugiados e às comunidades anfitriãs. Mesmo antes da crise atual, defendíamos o aumento do apoio para lidar com a falta de serviços, onde as consequências de cortes significativos de financiamento já eram visíveis. Apesar do conflito atual, a situação de segurança nesta parte do Sudão permanece calma e relativamente acessível. No entanto, não estamos vendo organizações humanitárias retornando para retomar as atividades a um nível que atenda às necessidades das pessoas no Sudão Oriental.

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“Face à atual crise, um dos maiores desafios no campo de refugiados de Um Rakuba, no leste do Sudão, é o acesso a abrigo seguro, assim como as más condições das atuais infraestruturas de abrigo, especialmente na estação chuvosa. Há alguns dias, alguns abrigos foram destruídos por fortes ventos e chuvas”, diz Zahir Gul, coordenador do projeto de MSF em Um Rakuba. “Com a chegada de aproximadamente 850 novos refugiados de Cartum, a situação piorou. Alguns refugiados vivem com parentes no campo, mas a maioria está em abrigos comuns, com condições de vida precárias. Eles estão traumatizados e têm acesso muito limitado a serviços essenciais como comida, abrigo e saneamento”.

Publicado originalmente em MSF

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