A preparação da 23ª Bienal de São Paulo, com sua primeira lista de artistas convidados, escapa deliberadamente do ímã europeu- embora não fuja de seus artistas – mas detém os olhos na produção que transborda mais ao sul do planeta. Não se trata de uma escolha por regiões, mas por circunstâncias da arte selecionada. Coreografias do Impossível, título da mostra que começará em 6 de setembro, faz pensar neste hemisfério em que a arte geralmente trabalha contra inviabilidades. Mas, neste caso, o sul está por toda parte do planeta onde viver e fazer arte é operar milagres. Pode ser um lugar de povos originários na América Latina, um movimento nos Estados Unidos, um exílio distante da casa materna palestina. No fim, é tão bom um convite para visitar o impossível e suspeitar que se dará de cara com o próprio coração brasileiro conduzindo a coreografia.
Merece um registro especial e entusiasmado o fato de encontrar no time de curadores o antropólogo Hélio Menezes, que já esteve antes trabalhando para ajudar na busca de “um outro mundo possível”, sempre no horizonte do improvável, mas ainda sim um horizonte perseguido. Com ele estão a artista e escritora portuguesa Grada Kilomba; o historiador da arte espanhol Manuel Borja-Villel; a curadora, escritora e pesquisadora Diane Lima.
A lista de artistas tem tanta gente negra e, o mais interessante é que, conforme uma declaração de curadores à imprensa, isso foi uma decorrência e não uma intenção da busca. Mas não há como pensar na lida com o impossível sem chegar na África e sua diáspora.
Mas este primeiro artigo sobre o que vai sendo divulgado para a 35ª Bienal é para registrar a felicidade de encontrar um nome que o diretor do Museu de Arte Moderna (MAM)0da Bahia, Pola Ribeiro, assegurou ainda em maio, em Salvador, que estaria incluído na lista de 2023: Rubem Valentim (1922-1991).
O artista baiano já foi homenageado em outra edição da Bienal, em 1977, e é a mesma exposição que volta. Porque precisa voltar a um tema que evoca a arte visionária. Valentim construiu com seu Altar de Oxalá algo que da a impressão de que você conhece mesmo ao ver pela primeira vez. É uma escrita de um idioma que você não aprendeu, mas entende. É um monumento em forma de pictogramas tridimencionais ou, como diz a semiótica sobre pictogramas: algo figurativo estilizado que funciona como um signo de uma língua escrita, não transcrevendo nem tendo relação explícita com a língua oral.
Pola explica melhor: Rubem Valentim criou uma escrita da religiosidade sincrética brasileira.
Conhecer a sala do MAM da Bahia onde mora a instalação, com suas esculturas brancas, enfileiradas e ladeadas, como em procissão, foi uma experiência particular para uma equipe do MEMO que esteve em Salvador buscando saber mais da história e da memória baiana dos malês – os muçulmanos escravizados que se levantaram contra o poder imperial do Brasil em 1835. Com Pola, queríamos referências da memória cultural, transcedental, e não apenas documental, dessa passagem.
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Ao lado da produtora cultural Fátima Froes, Pola falou ao grupo formado por mim e os jornalistas islâmicos Ahmad Alzoubi e Daud Abullah, este um negro caribenho pesquisador das revoltas negras nas Américas; E era especialmente o Altar de Oxalá a resposta de Pola para essa busca, sem que o tema dos malês estivesse explicitamente conectado, senão pela fé rebelde daqueles revoltosos que desencadearam no país o temor e a determinação das lutas por liberdade. No Altar de Oxalá, estava uma história comum de Brasil e África, história de espiritualidade, de linguagem, de devoção escrita pelo artista. História também de anos de pesquisa, desconstrução , depuração e geometrização de mitos presentes na cultura brasileira.
O Templo de Oxalá é um grupo muito especial de vinte esculturas e dez relevos de Rubem Valentim, em que a cor branca reveste tudo, uma homenagem ao orixá, o Obatalá do pano branco, criador da humanidade. Rubem Valentim era ele próprio ligado ao camdomblé da Bahia e a todo sincretismo advindo dos povos que formaram a fé e a identidade brasileira. Com peças móveis, as esculturas foram criadas para serem manipuláveis, o que talvez seja reservado a uma delas na Bienal.
É uma instalação para ver e entender, mais do que explicar.
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