Os eventos anuais em memória da enorme explosão que devastou a capital libanesa Beirute passaram a simbolizar algo além: sofrimento e luto sem tamanho, junto de uma espantosa falta de ação para identificar os responsáveis pela tragédia.
Embora as lembranças do desastre continuem nítidas, a busca por justiça parece esquecida. Como muitos outros crimes que assolam a região, a explosão de Beirute permanece imersa em mistério e desinformação. Anos e anos se passaram e nenhuma revelação tangível sobre os responsáveis veio à luz. Trata-se de somente um dentre uma série de catástrofes e crimes hediondos a serem investigados ou solucionados, deixando para trás um rastro de perguntas sem respostas.
Para aqueles afetados diretamente pela explosão, o lúgubre aniversário não é meramente um momento de reflexão sobre a perda e o sofrimento, mas também uma oportunidade de ressoar apelos por justiça e responsabilização. A empatia que se acende a cada ano com a rememoração do desastre parece distante do dever nacional em jamais esquecer, dia após dia, de esclarecer o crime. Fica a dúvida: Por que a explosão de 4 de agosto de 2020 deve ser lembrada apenas hoje, quando a busca por justiça deve ser, na prática, um esforço contínuo de tempo presente?
A falta de progresso nas investigações sobre o crime perdura em absoluto contraste com as eloquentes promessas feitas por líderes nacionais e internacionais de conceder respostas. O sentimento palpável de frustração e desilusão se exacerba pelo fato de que muitos cidadãos se sentem traídos por instituições e lideranças que fracassaram uma e outra vez em cumprir seus compromissos.
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Em meio ao contexto amplo de crimes sem solução, a explosão do porto de Beirute em 4 de agosto encontra seu lugar ao sol junto de inúmeros assassinatos impunes e misteriosos que desconcertaram o Líbano. Nesta longa lista, há as mortes enigmáticas de figuras eminentes, como o político socialista Kamal Jumblatt, o sheikh sunita Hassan Khaled, o presidente Rene Moawad e o ex-premiê Rafic Hariri, além de várias vozes nacionais e acadêmicas silenciadas de maneira brutal após 14 de fevereiro de 2005 – quando Hariri foi assassinado.
A forma como perseveram tais casos sem solução continua a encobrir como uma gigantesca sombra toda a paisagem política nacional, absorta em profundo ceticismo e desconfiança. À medida que os aniversários desses eventos trágicos vêm e vão, fantasmas da injustiça ecoam pelos corredores de poder, desafiando a determinação do país em enfrentar seus traumas e sua história de forma honesta e aberta. O perturbador padrão de inércia generalizada serve como lembrança sombria de que a busca por verdade e justiça ainda é uma promessa jamais cumprida, não apenas no caso da explosão no porto de Beirute, mas em toda a tapeçaria do atribulado passado libanês.
A memória coletiva dos cidadãos libaneses parece se condicionar por duas reações díspares, porém interligadas, diante da tragédia: uma resposta aparentemente indiferente aos crimes coletivos e assassinatos e o eventual desvanecer de toda memória e emoção que incidem às ruas. Este padrão cíclico de comovente vibração a princípio, dando espaço ao esquecimento, quem sabe, de modo inconsciente, alimenta os próprios atos que demandam a condenação. Esta mentalidade, caracterizada pela falta de uma busca firme e paciente por justiça, parece abrir caminho a crimes futuros, perpetrados em um ambiente onde a paixão e a indignação pouco a pouco cedem à apatia e à negligência.
O esquecimento se tornou, de muitas maneiras, parte intrínseca da mentalidade coletiva do Líbano. Cidadãos caminham por cada crime e desastre, um após o outro, perdendo pouco a pouco seu elo essencial com a história compartilhada do país. Este fenômeno apavorante de fato pode estar nas raízes das dificuldades do passado, do presente e do futuro, e da forma como a nação responde a elas. Este perpétuo ciclo de emoção e esquecimento serve tanto de reflexo a uma questão nacional ampla, quanto de mau presságio para o tempo porvir. Tais vícios apresentam um desafio complexo que exige ser encarado por todo o país, para que este enfim se liberte de uma história marcada por feridas abertas.
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Os eventos em memória da catástrofe no porto Beirute, sem verdade e justiça, não podem retumbar meramente as imagens e as dores de um dia lúgubre na história nacional; devem também dar espaço a uma reflexão profunda sobre um problema estrutural de negligência, inércia e promessas não cumpridas. Sim, o aniversário da tragédia de 4 de agosto simboliza as dores do passado recente; igualmente, desafia todos nós a encarar o presente e o futuro e reivindicar assim um compromisso genuíno para desenterrar a verdade e garantir que uma catástrofe como essa jamais volte a acontecer.
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