Kamal Aljafari é um dos dois artistas palestinos convidados para 35ª Bienal de São Paulo – a outra é a fotógrafa Ahlam Shibli. Não será a primeira vez do cineasta no Brasil. Ele já foi destaque na 11ª Mostra de Cinema Árabe do ICArabe, em 2016. Foi homenageado em Curitiba, no 10º Olhar de Cinema, em 2021. É artista aclamado em festivais internacionais, em Viena, Itália, New York… E agora faz parte da primeira lista de artistas esperados para a edição da Bienal de 2023 dedicada às “Coreografias do Impossível”, que começa em 6 de setembro.
Para além de toda inventividade e desconstrução estética que o consagraram entre os nomes do cinema contemporâneo, o artista desvenda em suas obras histórias asfixiadas e renegadas pela realidade da violência ocupante das terras palestinas. E que no entanto são histórias latentes que o artista consegue extrair até mesmo das brechas da narrativa imposta pela ocupação.
O diretor é apresentado ao público da próxima Bienal com a foto de um fragmento de diálogo, escrito em branco sobre o fundo vermelho escuro – que deixa o branco avermelhado, e que aparece em seu A Fidai Film. No texto, alguém lhe conta com certa aflição que um grande acervo desapareceu. O trecho pode se referir a um acervo específico – o filme trata do roubo de material sobre a Palestina contido em uma biblioteca em Beirute. Mas tanto esse trecho, como todos os filmes de Aljafari, falam de um roubo avassalador – da memória de um povo inteiro, com estratégias para travestí-la em memória de outro.
Segundo os curadores “os participantes desta Bienal desafiam o impossível nas suas mais variadas e incalculáveis formas. Eles vivem em contextos impossíveis, desenvolvem estratégias de evasão, ultrapassagem de limites e fuga das impossibilidades do mundo em que vivem. Eles lidam com a violência total, a impossibilidade da vida em plena liberdade, as desigualdades e suas expressões artísticas são transformadas pelas próprias impossibilidades do nosso tempo.”.
O cineasta faz documentários com recursos inusitados. Em um deles, utiliza as imagens gravadas pela câmara de segurança instalada por seu pai – e diante dela se passa o cotidiano ocupado que o artista explora com seus personagens espontâneos. Em outro, ele faz uso dos filmes de propaganda de equipamentos e ações militares de Israel dos anos 60 e 70, porém desorganiza e reorganiza a ordem do discurso e deixa antever outra história por trás da narrativa: homens brincando com a crueldade da guerra.
Ele também procura em cantos ignorados de cenas gravadas pela ocupação israelense elementos capturados ao acaso, que falam de um tempo e de um povo que não deveriam ter testemunho.
Kamal Aljafari nasceu em Ramla, em 1972. Hoje vive na Alemanha, mas carrega em seus filmes uma autobiografia de palestino no exílio, que reconhece nas ruínas o lar perdido e encontra meios de recuperá-lo na arte. É bonito, é poético, e parece decidido ao enfrentamento.
Quando esteve em Curitiba, participou de um diálogo com as curadoras Carla Italiano e Carol Almeida e falou de uma experiência que expressa bem a luta que é sua obra. A produção de seu filme Um Verão Incomum foi patrocinada por uma TV Alemã. Mas quando os financiadores se deram conta de que o projeto trazia outra história sobre a Palestina – e não aquela que a mídia transmitia como a certa – ficaram “decepcionados” e o descontentamento fez daquele um ano muito difícil para o cineasta, até que o filme, por fim, saísse.
A história da biblioteca do Líbano – a que se refere o texto da imagem – é um pedaço da memória palestina à qual os palestinos não têm direito. Aljafari diz que Fidai é um filme sabotagem. Porque Israel se apropria de acervos e cria uma história que lhe favoreça, e ele se apropria de imagens e memórias onde as consegue e cria outra, em resposta. No verão de 1982, o exército israelense invadiu Beirute e, lá, invadiu o Centro de Pesquisa Palestino e saqueou todo o seu arquivo, lotando caminhões que levaram tudo embora. Conforme a sinopse de Fidai o arquivo continha documentos históricos da Palestina, incluindo uma coleção de imagens. É Aljafari quem cria a nova memória desse saque.
É também uma resposta ao fato de que parte de acervos roubados da Palestina por vezes é aberta a pesquisadores israelenses, desde que não sejam pesquisadores árabes israelenses, desde que não sejam estes os próprios palestinos. Desde que não seja Kamal Aljafari.
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