O atual presidente da Colômbia, Gustavo Petro, é mais um exemplo de como o nível de tolerância e convivência dentro das regras do jogo da democracia representativa e liberal está cada vez mais estreito. Assim como na Guatemala com o candidato a presidente Bernardo Arévalo, Petro é um social democrata com vocação para conciliar interesses em nome de um desenvolvimento nacional. O guatemalteco tem o mesmo perfil. O primeiro está com dificuldades para prosseguir em seu mandato eletivo, embora o resultado tenha sido imediatamente reconhecido tanto por seu rival como pelas cortes eleitorais do país. Já Arévalo cumpre a sina de outro ex-candidato e já ex-presidente, o peruano Pedro Castillo.
Os narcocassetes e o Processo 8000
Vamos nos ater ao caso colombiano. No país de Antonio Nariño o fantasma permanente é o da influência da economia política do narcotráfico no processo político. O caso mais conhecido envolve o então candidato Ernesto Samper e o Cartel de Cali (o maior da história, superando e muito o mais conhecido Cartel de Medellín). Chamados de “narcocassetes” (pelas gravações de conversas) ou Processo 8000.
Em 19 de junho, um dia após a péssima estreia da Colômbia na Copa do Mundo de futebol masculino profissional dos Estados Unidos contra a Romênia por 3 a 1, o líder liberal Ernesto Samper foi eleito presidente no segundo turno. 72 horas depois, o candidato Andrés Pastrana admitiu sua derrota, mas declarou que um presidente com dinheiro do narcotráfico em sua campanha não tinha estatura moral para liderar seu povo. As autoridades judiciais já sabiam da existência dos narcocassetes, com conversas casuais entre o jornalista Alberto Giraldo e o Rodríguez Orejuela, e indícios sérios de que o dinheiro do cartel de Cali estava entrando nas campanhas presidenciais. A reação do escolhido Samper foi se encontrar com o promotor De Greiff para lhe oferecer os livros de contas de sua campanha. Estranha coincidência, a filha do Procurador havia sido a primeira diretora financeira da campanha política.
Nesta mesma eleição, o M19, a antiga guerrilha de operações urbanas na Colômbia lançou novamente candidatos, mesmo após as desventuras das eleições presidenciais de 1990, quando o seu candidato e ex-líder da estrutura militar, Carlos Pizarro Leongómez, foi assassinado pelo Cartel de Medellín. Na época, o número dois da força política e ex-guerrilha desmobilizada era o engenheiro Antonio Navarro Wolff. O M-19 em 1994 apresentou sua candidatura como cabeça de chapa da coalizão Compromisso Colômbia, que reuniu movimentos políticos indígenas e de esquerda. Como candidato a vice-presidente, foi indicado o líder indígena Jesús Piñacué. Naquele pleito a força política alcançou apenas 3,79% dos votos.
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A crise do sistema político: social democracia e uribismo
Já no pleito de 2022 Gustavo Petro – ex-M19 – alcançou 40,34% dos votos no primeiro turno e 50,44% no segundo turno. Derrotou à época o empresário Rodolfo Hernández Suárez, tido como o “anticandidato” da direita. Nas eleições presidenciais de 2018, o mesmo Petro havia atingido um quarto dos votos válidos no primeiro turno e no segundo perdeu para o uribista Iván Duque, que alcançou a 54,03% dos votos. As semelhanlas e “curiosidades” do processo histórico não pára aí.
Petro pertence a uma ex-guerrilha há mais de trinta anos desmobilizada. Já o ex-presidente Iván Duque é herdeiro político de Álvaro Uribe Vélez, cuja família é uma das fundadoras do Cartel de Medellín e seu pai e patriarca do clá conservador, é um dos pioneiros no paramilitarismo do narcotráfico na Colômbia. Samper foi eleito mas mal conseguiu governar na segunda metade dos anos ’90 pelas acusações de haver recebido dinheiro do Cartel de Cáli, arquiinimigo de Medellín. Já Petro, na consagração de sua carreira política se vê diante da herança maldita de Antioquia (departamento sede do conservadorismo moderno colombiano), do paramilitarismo e das relações complementares entre a repressão, o Plano Colômbia e o aparelho de Estado.
Com o sistema político clássico entre Liberais e Conservadores em ruínas, a herança do neoconservadorismo do “Centro Democrático”, a força política de extrema direita fundada por Uribe e seus sucessores consegue o empate técnico. Já é incapaz de governar, mas ao mesmo tempo, ainda tem as capacidades de mobilizar as forças patronais e militares de modo a impedir o governo social-democrata. Este é o pano de fundo da crise colombiana envolvendo um dos seis filhos do presidente e acusações de favorecimento pelo narcotráfico na campanha de 2022.
O caso de Nicolás Fernando Petro Burgos e a Operação de Lawfare contra seu pai
O filho mais velho do atual presidente foi preso na manhã do sábado 29 de julho. As acusações passam por lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito e favorecimento por receber quantias oriundas do narcotráfico. O caso montado pelo Ministério Público (MP) da Colômbia tem como titular ao procurador Mario Burgos. Desde o princípio do processo e a prisão decorrente, o mandatário do país, Gustavo Petro, afirmou que nada iria fazer para impedir ou atrapalhar o trabalho da procuradoria e de fato assim foi.
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Nicolás Fernando termina por assinar um acordo de delação premiada ajudando assim a montar o caso perfeito. Ele acusa a campanha do próprio pai de haver recebido vultosas quantias do narcotráfico, mais especificamente do contrabandista conhecido como “Homem Malboro”, Samuel Santander López Sierra. A perfeição dos tempos acusatórios chama atenção. O suposto corruptor é condenado por narcotráfico nos Estados Unidos. Automaticamente, a administração à frente da Casa de Nariño (sede do Poder Executivo colombiano, em Bogotá, capital do país) entra na armadilha perfeita da inteligência dos EUA.
Vejamos. Samuel Santander cumpriu dezoito anos de prisão nos Estados Unidos. A ex-mulher de Nicolás Fernando afirma que ele, o filho mais velho do presidente, vivia uma vida de luxos com uma renda sem origem e com ingressos duvidosos. Sua ex-esposa – Daysuris Vásquez – se separa por infidelidade e aponta a Alfonso Hilsaca – antigo patrocinador do paramiliarismo e operador de um escritório de sicários (assassinos de aluguel) – como outro financiador ilegal do filho do presidente. Este, preso, comuta (troca) metade de sua pena pela delação premiada. E quem ele poderia entregar? Justamente seu pai, desafeto tanto de narcotraficantes como de paramilitares e visto com enorme desconfiança pelos operadores de inteligência e enlace do Plano Colômbia – o vergonhoso acordo entre militares estadunidenses e colombianos -, cujo resultado é a perda parcial de soberania do país para o Comando Sul da superpotência.
Linhas conclusivas: uma trama de militares, procuradores e demais interessados
Desde a campanha, as forças armadas e policiais da Colômbia (lá opera como Polícia Nacional, subordinada ao Poder Executivo) vêem com muita desconfiança a Petro. O contingente de 228.000 militares e 172.000 policiais na ativa (o segundo maior do Continente, atrás apenas do Brasil) opera como força de pressão para manipulações sem fim lideradas pela Associação Colombiana de Oficiais da Reserva e outras agrupações semelhantes. Antes do escândalo do filho do presidente, as manifestações da extrema direita militar eram constantes na Praça Bolívar. Agora, com a motivação perfeita, é possível (e provável) que venha uma ofensiva conservadora, militar, e de setores apoiados pelos Estados Unidos.
O governo eleito, com Petro e a líder negra Francia Márquez, está diante do maior de seus desafios: seguir governando, exercendo autoridade e com a legitimação embasada nas maiorias mobilizadas. Duro momento para a frágil democracia colombiana.
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O atual presidente da Colômbia, Gustavo Petro, é mais um exemplo de como o nível de tolerância e convivência dentro das regras do jogo da democracia representativa e liberal está cada vez mais estreito. Assim como na Guatemala com o candidato a presidente Bernardo Arévalo, Petro é um social democrata com vocação para conciliar interesses em nome de um desenvolvimento nacional. O guatemalteco tem o mesmo perfil. O primeiro está com dificuldades para prosseguir em seu mandato eletivo, embora o resultado tenha sido imediatamente reconhecido tanto por seu rival como pelas cortes eleitorais do país. Já Arévalo cumpre a sina de outro ex-candidato e já ex-presidente, o peruano Pedro Castillo.
Os narcocassetes e o Processo 8000
Vamos nos ater ao caso colombiano. No país de Antonio Nariño o fantasma permanente é o da influência da economia política do narcotráfico no processo político. O caso mais conhecido envolve o então candidato Ernesto Samper e o Cartel de Cali (o maior da história, superando e muito o mais conhecido Cartel de Medellín). Chamados de “narcocassetes” (pelas gravações de conversas) ou Processo 8000.
Em 19 de junho, um dia após a péssima estreia da Colômbia na Copa do Mundo de futebol masculino profissional dos Estados Unidos contra a Romênia por 3 a 1, o líder liberal Ernesto Samper foi eleito presidente no segundo turno. 72 horas depois, o candidato Andrés Pastrana admitiu sua derrota, mas declarou que um presidente com dinheiro do narcotráfico em sua campanha não tinha estatura moral para liderar seu povo. As autoridades judiciais já sabiam da existência dos narcocassetes, com conversas casuais entre o jornalista Alberto Giraldo e o Rodríguez Orejuela, e indícios sérios de que o dinheiro do cartel de Cali estava entrando nas campanhas presidenciais. A reação do escolhido Samper foi se encontrar com o promotor De Greiff para lhe oferecer os livros de contas de sua campanha. Estranha coincidência, a filha do Procurador havia sido a primeira diretora financeira da campanha política.
Nesta mesma eleição, o M19, a antiga guerrilha de operações urbanas na Colômbia lançou novamente candidatos, mesmo após as desventuras das eleições presidenciais de 1990, quando o seu candidato e ex-líder da estrutura militar, Carlos Pizarro Leongómez, foi assassinado pelo Cartel de Medellín. Na época, o número dois da força política e ex-guerrilha desmobilizada era o engenheiro Antonio Navarro Wolff. O M-19 em 1994 apresentou sua candidatura como cabeça de chapa da coalizão Compromisso Colômbia, que reuniu movimentos políticos indígenas e de esquerda. Como candidato a vice-presidente, foi indicado o líder indígena Jesús Piñacué. Naquele pleito a força política alcançou apenas 3,79% dos votos.
A crise do sistema político: social democracia e uribismo
Já no pleito de 2022 Gustavo Petro – ex-M19 – alcançou 40,34% dos votos no primeiro turno e 50,44% no segundo turno. Derrotou à época o empresário Rodolfo Hernández Suárez, tido como o “anticandidato” da direita. Nas eleições presidenciais de 2018, o mesmo Petro havia atingido um quarto dos votos válidos no primeiro turno e no segundo perdeu para o uribista Iván Duque, que alcançou a 54,03% dos votos. As semelhanlas e “curiosidades” do processo histórico não pára aí.
Petro pertence a uma ex-guerrilha há mais de trinta anos desmobilizada. Já o ex-presidente Iván Duque é herdeiro político de Álvaro Uribe Vélez, cuja família é uma das fundadoras do Cartel de Medellín e seu pai e patriarca do clá conservador, é um dos pioneiros no paramilitarismo do narcotráfico na Colômbia. Samper foi eleito mas mal conseguiu governar na segunda metade dos anos ’90 pelas acusações de haver recebido dinheiro do Cartel de Cáli, arquiinimigo de Medellín. Já Petro, na consagração de sua carreira política se vê diante da herança maldita de Antioquia (departamento sede do conservadorismo moderno colombiano), do paramilitarismo e das relações complementares entre a repressão, o Plano Colômbia e o aparelho de Estado.
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Com o sistema político clássico entre Liberais e Conservadores em ruínas, a herança do neoconservadorismo do “Centro Democrático”, a força política de extrema direita fundada por Uribe e seus sucessores consegue o empate técnico. Já é incapaz de governar, mas ao mesmo tempo, ainda tem as capacidades de mobilizar as forças patronais e militares de modo a impedir o governo social-democrata. Este é o pano de fundo da crise colombiana envolvendo um dos seis filhos do presidente e acusações de favorecimento pelo narcotráfico na campanha de 2022.
O caso de Nicolás Fernando Petro Burgos e a Operação de Lawfare contra seu pai
O filho mais velho do atual presidente foi preso na manhã do sábado 29 de julho. As acusações passam por lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito e favorecimento por receber quantias oriundas do narcotráfico. O caso montado pelo Ministério Público (MP) da Colômbia tem como titular ao procurador Mario Burgos. Desde o princípio do processo e a prisão decorrente, o mandatário do país, Gustavo Petro, afirmou que nada iria fazer para impedir ou atrapalhar o trabalho da procuradoria e de fato assim foi.
Nicolás Fernando termina por assinar um acordo de delação premiada ajudando assim a montar o caso perfeito. Ele acusa a campanha do próprio pai de haver recebido vultosas quantias do narcotráfico, mais especificamente do contrabandista conhecido como “Homem Malboro”, Samuel Santander López Sierra. A perfeição dos tempos acusatórios chama atenção. O suposto corruptor é condenado por narcotráfico nos Estados Unidos. Automaticamente, a administração à frente da Casa de Nariño (sede do Poder Executivo colombiano, em Bogotá, capital do país) entra na armadilha perfeita da inteligência dos EUA.
Vejamos. Samuel Santander cumpriu dezoito anos de prisão nos Estados Unidos. A ex-mulher de Nicolás Fernando afirma que ele, o filho mais velho do presidente, vivia uma vida de luxos com uma renda sem origem e com ingressos duvidosos. Sua ex-esposa – Daysuris Vásquez – se separa por infidelidade e aponta a Alfonso Hilsaca – antigo patrocinador do paramiliarismo e operador de um escritório de sicários (assassinos de aluguel) – como outro financiador ilegal do filho do presidente. Este, preso, comuta (troca) metade de sua pena pela delação premiada. E quem ele poderia entregar? Justamente seu pai, desafeto tanto de narcotraficantes como de paramilitares e visto com enorme desconfiança pelos operadores de inteligência e enlace do Plano Colômbia – o vergonhoso acordo entre militares estadunidenses e colombianos -, cujo resultado é a perda parcial de soberania do país para o Comando Sul da superpotência.
Linhas conclusivas: uma trama de militares, procuradores e demais interessados
Desde a campanha, as forças armadas e policiais da Colômbia (lá opera como Polícia Nacional, subordinada ao Poder Executivo) vêem com muita desconfiança a Petro. O contingente de 228.000 militares e 172.000 policiais na ativa (o segundo maior do Continente, atrás apenas do Brasil) opera como força de pressão para manipulações sem fim lideradas pela Associação Colombiana de Oficiais da Reserva e outras agrupações semelhantes. Antes do escândalo do filho do presidente, as manifestações da extrema direita militar eram constantes na Praça Bolívar. Agora, com a motivação perfeita, é possível (e provável) que venha uma ofensiva conservadora, militar, e de setores apoiados pelos Estados Unidos.
O governo eleito, com Petro e a líder negra Francia Márquez, está diante do maior de seus desafios: seguir governando, exercendo autoridade e com a legitimação embasada nas maiorias mobilizadas. Duro momento para a frágil democracia colombiana.
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