Um grupo de 379 pesquisadores e ativistas da sociedade civil, do Norte e Sul global, lançou um manifesto contra o “Memorando de Entendimento para Parceria Estratégica entre União Europeia e Tunísia”, assinado em 16 de julho de 2023.
Em julho, o bloco europeu finalizou um acordo de €1 bilhão com a Tunísia para cooperação na contenção do fluxo de refugiados pelo mar Mediterrâneo, apesar de alertas contrários de organizações humanitárias e especialistas em direito internacional.
Sob o pacto – assinado após encontro entre a chefe da Comissão da União Europeia, Ursula von der Leyen, o primeiro-ministro holandês Mark Rutte, a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni e o presidente tunisiano Kais Saied –, Bruxelas concordou em dar apoio financeiro e técnico ao país norte-africano para “dissuadir” a migração à Europa.
Nos últimos meses, a Tunísia ultrapassou a Líbia como o principal ponto de partida no Norte da África para requerentes de asilo na Europa. O governo de Saied reagiu com repressão aos “migrantes ilegais”.
Em discurso proferido em fevereiro, o presidente tunisiano acusou refugiados subsaarianos de ameaçar a “composição demográfica” do país.
Os signatários condenaram “as políticas de externalização das fronteiras europeias”, assim como “as várias declarações públicas do presidente Kais Saied, do Ministério do Interior, do Ministério das Relações Exteriores e de muitos membros da Assembleia dos Representantes do Povo direcionadas às populações migrantes desde fevereiro”.
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“Denunciamos a perigosa guinada na aceitação dessas políticas e dos pressupostos racistas que as fundamentam”, reiterou o manifesto.
“A Tunísia parece disposta em fortalecer um sistema de exclusão e exploração daqueles que vêm de países da África subsaariana. Em vez de contrapor essa nova escalada racista, com base em um discurso populista e conspiratório no contexto da deriva autoritária que assola o país, líderes europeus instrumentalizam as chamadas migrações irregulares, ao retratá-las como ‘uma praga comum’”.
“De maneira oportunista e irresponsável, a União Europeia avaliza a retórica do presidente e alimenta a xenofobia e o racismo”, insistiu a carta. “Expressamos nossa total solidariedade a todos os migrantes e rechaçamos discursos de ódio e desinformação de ambos os lados do Mediterrâneo. É urgente questionar as razões pelas quais populações vulneráveis são usadas como bodes expiatórios para encobrir o fracasso das políticas públicas na Tunísia”.
O manifesto observou que a fala do presidente em 21 de fevereiro desencadeou uma série de agressões contra os negros no território tunisiano, incluindo prisões arbitrárias, despejos e demissões de cunho racista.
“Enquanto várias embaixadas organizavam repatriações, muitas pessoas fugiam pelo mar”, prosseguiu o alerta. “No mesmo período, houve um aumento drástico de naufrágios, mortes ou desaparecimentos ao largo da costa tunisiana”.
Neste contexto, conforme o documento, centenas de pessoas permanecem acampadas em frente aos escritórios do Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e da Organização Internacional para Migrações (OIM), na capital Túnis, para exigir sua realocação a países seguros.
A carta observou ainda que a resposta violenta aos apelos xenofóbicos de Saied resultou em uma escalada de batidas policiais na cidade de Sfax, nas quais 1.200 migrantes subsaarianos foram deportados a zonas áridas militarizadas e de difícil acesso nas fronteiras com a Líbia e a Argélia – “sem água, nem comida”.
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O manifestou advertiu que, apesar da negativa do Ministério do Interior em Túnis, ao menos 20 mortes foram confirmadas, com provável subnotificação.
Por trás de categorias racializantes como “subsarianos”, “africanos” ou “migrantes irregulares”, há estudantes, trabalhadores, refugiados e solicitantes de asilo; pessoas que chegaram para receber tratamento médico ou que aguardam há anos pelo visto de residência, assim como pessoas que não podem sair do território para renovar o visto. A diversidade de trajetórias dessas pessoas é invisibilizada, resultando em sua marginalização e desumanização. Muitos não conseguem regularizar sua situação devido a um quadro legal obsoleto e incoerente e vagarosa burocracia. Assim como acontece com muitos tunisianos na Europa, a situação dos refugiados na Tunísia se torna “irregular” devido a leis e práticas que classificam as populações do continente como “desejáveis” ou “indesejáveis” e que criminalizam os jovens. Por outro lado, a estadia irregular de migrantes ocidentais – muito comum na Tunísia, devido às mesmas disfunções burocráticas – não é vista como um problema de segurança.
A carta também contestou a tese de Saied de que a mão de obra imigrante é culpada pela crise econômica no país, ao descrevê-la como “narrativa xenofóbica” e observar que “assim como muitos tunisianos, trabalhadores estrangeiros costumam ser explorados e expostos a condições precárias e insegurança alimentar”.
Conforme os signatários, ao contrário, a crise decorre da “falta de prospectos econômicos, junto de políticas de austeridade que recebem apoio internacional, gestão da dívida pública e inaptidão do Estado em tratar das desigualdades sociais”.
Os pesquisadores também contestaram alegações de Saied de que o pacto visa a soberania tunisiana, ao sugerir que o presidente mantém uma tradição de subserviência de governos antecessores, ao tornar seu território uma “zona neutra” a serviço das fronteiras europeias e, por consequência, isolar seu próprio país.
“A União Europeia insiste em dar carta branca à Tunísia, estratégia ainda mais irresponsável porque é ineficaz”, alertou a carta em seu último tópico. “Enquanto causas socioeconômicas estruturais das migrações não forem tratadas e o acesso à mobilidade não for repensado, a abordagem securitária só tornará as travessias ainda mais mortais, em favor dos traficantes”.
Este memorando aumenta a assimetria entre a União Europeia e a Tunísia no acesso à mobilidade e oportunidades, contribuindo especialmente para a “fuga de cérebros” e modelos econômicos que alimentam as causas da migração e das desigualdades. As contrapartidas vagas, como “facilitação de vistos” e “parcerias de talentos”, fazem parte das promessas feitas antes à Tunísia, que jamais foram cumpridas.
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A carta contrapôs, por fim, a vontade expressa no acordo de “preservar a vida humana”, ao observar que cerca de 27 mil pessoas morreram ou desapareceram no Mediterrâneo desde 2014, devido às mesmas políticas europeias que negam o resgate e criminalizam refugiados e requerentes de asilo.
“O único meio de realmente proteger os interesses e a dignidade dos cidadãos tunisianos e africanos presentes no país é um diálogo construtivo com as populações afetadas por essas políticas, as diversas entidades que as representam, atores da sociedade civil e comunidades acadêmicas”, concluiu o documento. “Essas trocas devem contribuir a uma reflexão coletiva sobre soluções políticas distintas da atual gestão de morte nas fronteiras, ao reconhecer as migrações como direito e riqueza a todos e todas”.
O documento está disponível em italiano na versão online do jornal Il manifesto; em francês, no periódico online Mediapart; em árabe, no blog independente tunisiano Nawaat.