Portuguese / English

Middle East Near You

Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

Tensa, desafiadora e atual, ‘Uma Casa em Jerusalém’, na Mostra de Cinema Árabe de 2023

A menina fantasma em Uma Casa em Jerusalém
A menina fantasma em Uma Casa em Jerusalém ´Divulgação]

Quem viu o filme Uma Casa em Jerusalém na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em  2019 não deve confundí-lo,  pelo título igual, com Uma Casa em Jerusalém que a 18ª Mostra de Cinema Árabe está exibindo agora no Cine SESC em São Paulo.

O primeiro, um documentário do cineasta israelense Amos Gitai, revisita a casa de um filme anterior – censurado em Israel – , imóvel que pertencera a um médico palestino e fora tomado pela ocupação e habitado  sucessivamente por várias famílias judias  Entre depoimentos colhidos de  personagens reais, aquele filme exibe sem julgar a incongruência de famílias judias que não tinham nada contra os palestinos embora não se importassem em morar em casas que lhes foram tomadas.

Assim como a indiferença exibida no documentário, a propaganda sionista da Palestina como  “uma terra sem povo para um povo sem terra”  poupou e continua poupando as levas de habitantes das casas tomadas da mais elementar admissão de culpa pela  participação ativa na realidade de uma limpeza étnica deliberada Na lógica auto-indulgente  do colono que participou do assalto a Sheih Jarrah, “Se eu não roubar sua casa, outra pessoa a roubará”.

Em Uma Casa em Jerusalém do palestino Muayad Alayan, exibido agora na mostra promovida pelo ICArabe e Cine SESC, essa é a realidade que grita pelas paredes de  casa ocupada e assombra seus moradores. Não é possível para uma família europeia, esfacelada pela dor da morte da mãe,  buscar a cura e superação simplesmente mudando-se, como um fato natural, para uma casa que já fora o lar de uma família árabe expulsa pela Nakba de 1948. O filme mostra que a alma da nova casa está lá, está viva, e se revela de modo assustador até impor aos ocupantes que  lidem com a realidade dolorosa criada pela ocupação israelense . Se há uma concessão irreal no apartheid, está na empatia que o diretor tenta produzir entre beneficiários e vítimas do mesmo roubo.

 

               LEIA: A mulher e o Líbano de 1958 na abertura da Mostra do Cinema Árabe em São Paulo

Naturalizar, apagar, fazer esquecer, esse propósito impossível de Israel de judaização total de Jerusalém esbarra nos fantasmas que retornam em carne e osso a cada geração que reclama seus direitos históricos. O cinema remete a uma Jerusalém tomada de assalto impunemente. E por se manterem impunes, tais crimes são os mesmos que se repetem fora das telas.

A sucessão de despejos e demolições, apagamento de bairros inteiros, expulsão e separação de famílias e a fobia pelas indeléveis marcas árabes de Jerusalém fazem a história da cidade de hoje, criando novas memórias e assombrações que vão tornando a vida do Estado ocupante atormentada e impossível, senão sob a forma do atual apartheid.

Tomar contato com o cinema palestino remete a um processo de contínua resistência.

Ramy e Muayad Alayan,

Ramy e Muayad Alayan, do filme Uma Casa em Jerusalém

Muayad Alayan é um cineasta radicado em Jerusalém. Diretor premiado em festivais de cinema internacionais com filmes falados em árabe, ele também trabalhou um centros juvenis e comunitários e organizações não governamentais em projetos de promoção da cultura cinematográfica e da infraestrutura cinematográfica na Palestina. Também atuou como instrutor de direção e fotografia em diversas instituições acadêmicas

Uma casa em Jerusalém é o primeiro filme em inglês de Alayan. Foi escrito em conjunto com seu irmão Ramy e a ideia surgiu das memórias da própria família.

Em 1948, as famílias de seu pai e sua mãe foram expulsas de casa pela Nakba. Alayan diz que eles tiveram sorte de serem refugiados em seu próprio país, já que a maioria foi obrigada a sair da Palestina. O pai e o avô tinham um açougue no bairro onde se passa o filme – parte filmado em Jerusalém Ocidental e interiores filmados na parte oriental.

“Ao crescermos, nossos pais e nossa avó eram realmente obcecados com seu passado e com a vida que tiveram. Crescemos com a sensação de que um pedaço deles estava mesmo preso no tempo, naquelas casas, naquela época, naquele bairro. Meu pai costumava nos levar de carro até a escola e nos contava histórias sobre seus vizinhos e as lojas que existiam lá.”, ele recordou em uma entrevista recente ao Screen Daily.

Filmar nos Territórios Palestinos ocupados não é nada fácil, a ponto de Alayan chamar o processo de “filmagens de guerrilha” e afirmar que “você não tem escolha a não ser filmar com uma equipe mínima e fazer com que pareça um documentário.” Além disso, havia a covid. O filme foi feito quanto todos os moradores tentavam se proteger do coronavírus.

No filme, a menina judia do Reino Unido é interpretada por Miley Locke. Para a menina palestina que surge na casa, foi feito um concurso – já que formar elenco é difícil nas condições da  Palestina ocupada – e a vencedora foi Sheherazade Makhoul Farrell, nascida em Jerusalém e de ascendência palestina.

Filme de grande suspense, Uma Casa em Jerusalém tem base na realidade de toda Palestina e deve calar fundo às gerações da diáspora. Como diz o diretor, “É uma história contada através de crianças, mas não é só para crianças. Ela espelha o mundo adulto.”

Espelha também um desejo profundo de resgate. A menina que surge dos porões da casa ocupada e cobra que a outra lhe devolva sua história continua a cobrar por ela na Jerusalém ocupada de hoje.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

Categorias
ArtigoIsraelPalestinaResenhas - Filmes & Documentários
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments