Quem viu o filme Uma Casa em Jerusalém na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2019 não deve confundí-lo, pelo título igual, com Uma Casa em Jerusalém que a 18ª Mostra de Cinema Árabe está exibindo agora no Cine SESC em São Paulo.
O primeiro, um documentário do cineasta israelense Amos Gitai, revisita a casa de um filme anterior – censurado em Israel – , imóvel que pertencera a um médico palestino e fora tomado pela ocupação e habitado sucessivamente por várias famílias judias Entre depoimentos colhidos de personagens reais, aquele filme exibe sem julgar a incongruência de famílias judias que não tinham nada contra os palestinos embora não se importassem em morar em casas que lhes foram tomadas.
Assim como a indiferença exibida no documentário, a propaganda sionista da Palestina como “uma terra sem povo para um povo sem terra” poupou e continua poupando as levas de habitantes das casas tomadas da mais elementar admissão de culpa pela participação ativa na realidade de uma limpeza étnica deliberada Na lógica auto-indulgente do colono que participou do assalto a Sheih Jarrah, “Se eu não roubar sua casa, outra pessoa a roubará”.
Em Uma Casa em Jerusalém do palestino Muayad Alayan, exibido agora na mostra promovida pelo ICArabe e Cine SESC, essa é a realidade que grita pelas paredes de casa ocupada e assombra seus moradores. Não é possível para uma família europeia, esfacelada pela dor da morte da mãe, buscar a cura e superação simplesmente mudando-se, como um fato natural, para uma casa que já fora o lar de uma família árabe expulsa pela Nakba de 1948. O filme mostra que a alma da nova casa está lá, está viva, e se revela de modo assustador até impor aos ocupantes que lidem com a realidade dolorosa criada pela ocupação israelense . Se há uma concessão irreal no apartheid, está na empatia que o diretor tenta produzir entre beneficiários e vítimas do mesmo roubo.
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Naturalizar, apagar, fazer esquecer, esse propósito impossível de Israel de judaização total de Jerusalém esbarra nos fantasmas que retornam em carne e osso a cada geração que reclama seus direitos históricos. O cinema remete a uma Jerusalém tomada de assalto impunemente. E por se manterem impunes, tais crimes são os mesmos que se repetem fora das telas.
A sucessão de despejos e demolições, apagamento de bairros inteiros, expulsão e separação de famílias e a fobia pelas indeléveis marcas árabes de Jerusalém fazem a história da cidade de hoje, criando novas memórias e assombrações que vão tornando a vida do Estado ocupante atormentada e impossível, senão sob a forma do atual apartheid.
Tomar contato com o cinema palestino remete a um processo de contínua resistência.
Muayad Alayan é um cineasta radicado em Jerusalém. Diretor premiado em festivais de cinema internacionais com filmes falados em árabe, ele também trabalhou um centros juvenis e comunitários e organizações não governamentais em projetos de promoção da cultura cinematográfica e da infraestrutura cinematográfica na Palestina. Também atuou como instrutor de direção e fotografia em diversas instituições acadêmicas
Uma casa em Jerusalém é o primeiro filme em inglês de Alayan. Foi escrito em conjunto com seu irmão Ramy e a ideia surgiu das memórias da própria família.
Em 1948, as famílias de seu pai e sua mãe foram expulsas de casa pela Nakba. Alayan diz que eles tiveram sorte de serem refugiados em seu próprio país, já que a maioria foi obrigada a sair da Palestina. O pai e o avô tinham um açougue no bairro onde se passa o filme – parte filmado em Jerusalém Ocidental e interiores filmados na parte oriental.
“Ao crescermos, nossos pais e nossa avó eram realmente obcecados com seu passado e com a vida que tiveram. Crescemos com a sensação de que um pedaço deles estava mesmo preso no tempo, naquelas casas, naquela época, naquele bairro. Meu pai costumava nos levar de carro até a escola e nos contava histórias sobre seus vizinhos e as lojas que existiam lá.”, ele recordou em uma entrevista recente ao Screen Daily.
Filmar nos Territórios Palestinos ocupados não é nada fácil, a ponto de Alayan chamar o processo de “filmagens de guerrilha” e afirmar que “você não tem escolha a não ser filmar com uma equipe mínima e fazer com que pareça um documentário.” Além disso, havia a covid. O filme foi feito quanto todos os moradores tentavam se proteger do coronavírus.
No filme, a menina judia do Reino Unido é interpretada por Miley Locke. Para a menina palestina que surge na casa, foi feito um concurso – já que formar elenco é difícil nas condições da Palestina ocupada – e a vencedora foi Sheherazade Makhoul Farrell, nascida em Jerusalém e de ascendência palestina.
Filme de grande suspense, Uma Casa em Jerusalém tem base na realidade de toda Palestina e deve calar fundo às gerações da diáspora. Como diz o diretor, “É uma história contada através de crianças, mas não é só para crianças. Ela espelha o mundo adulto.”
Espelha também um desejo profundo de resgate. A menina que surge dos porões da casa ocupada e cobra que a outra lhe devolva sua história continua a cobrar por ela na Jerusalém ocupada de hoje.
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