Em toda a Faixa de Gaza, dias de angústia se estendem a noites de terror. Mais de mil palestinos morreram nos últimos dias, sob a mais recente rodada de bombardeios israelenses ao território costeiro, incluindo massacres chocantes em Khan Younis e nos campos de refugiados de Shati e Jabalia.
Em apenas quatro dias, a paisagem de Gaza se transformou dramaticamente. Complexos residenciais inteiros desapareceram, ruas familiares se tornaram irreconhecíveis. O massacre perpetrado por Israel impôs uma imagem de distopia e apocalipse a uma das áreas mais movimentadas de Gaza.
“Não posso acreditar que acordarmos vivos. Vimos os horrores da morte diante de nossos próprios olhos”, relatou Arwa (33), residente de Gaza, ao Middle East Eye.
Antes de sua casa no bairro Rimal ser bombardeada, com poucos minutos de alerta, Arwa correu com sua família para tentar se proteger em um porão próximo.
“Vimos a morte, literalmente a morte. O brilho vermelho do céu, o cheiro de pólvora por toda a parte. Destroços de concreto e vidro quebrado jogados por todo o lado. E não parou por aí. Mulheres choravam. Crianças gritavam. Quando amanheceu, arrisquei meu pescoço para ver o que tinha sobrado do meu apartamento. Ele foi aniquilado”.
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O estado de guerra não começou há quatro dias. Palestinos de Gaza vivem em constante situação de medo, violência e incerteza. Carregamos o duro fardo das batalhas passadas, junto das constantes violações de Israel. A impunidade israelense foi incondicional e irrestrita em todos os confrontos anteriores, assim como o cerco de 16 anos sob o silêncio e a cumplicidade internacional.
Hoje, a constante presença de drones zunindo sobre nossas cabeças nos angustia ainda mais. Jamais deixaram nossos céus, é verdade, mas nos últimos dias se tornaram mais e mais ruidosos e ameaçadores. Nas redes sociais, muitos amigos compartilharam notícias desoladoras da morte de entes queridos. Alguns pedem socorro, outros estão presos sob os escombros.
Mensagens de adeus
À medida que Israel parece preparar uma invasão por terras, muitas pessoas em Gaza refletem sobre a possibilidade da morte, se perguntando o que vai acontecer, sob preces deveras comovidas. Muitos de meus amigos enviaram mensagens de adeus, pedindo perdão àqueles que, porventura, tenham ofendido. Parece que o dia de acerto de contas está chegando.
Perguntas inocentes das crianças de Gaza ecoam as dores do mundo:
Por que querem nos matar? Quando vão nos matar? Vai doer? Vou sentir? Vamos morrer todos ao mesmo tempo ou um por vez? Vocês vêm conosco? Seremos mortos à noitinha ou pela manhã?
Em caso de evacuação, minha cunhada me pediu para cuidar de sua filha caçula, enquanto ela tenta proteger seus dois irmãos. Outra amiga viu seu apartamento ser destruído, tendo acabado de mudar. Me lembro de suas palavras de esperança antes de eclodir a guerra: “Devemos celebrar. Venha visitar meu novo apartamento. Venha nos ver”. Pouco depois, tudo foi pelos ares.
Desde o início de 2023, um número estarrecedor de palestinos perdeu sua vida; muitos outros foram feridos. Pacientes em Gaza morrem um após o outro, à espera de licença para obter tratamento médico em Israel, através da travessia de Erez, principal via de acesso entre a Faixa de Gaza e o mundo exterior.
O que me incomoda profundamente é a ideia errônea da comunidade internacional de que nós – os palestinos – nos tornamos imunes ou resilientes o bastante para suportar todos os horrores que jogarem sobre nós.
Sim, mantemos uma resistência notável para se adaptar às piores situações – mas isso não significa que temos de sofrer cada vez mais. Não nos anestesiamos; ao contrário, lutamos para navegar nos desafios mais simples que o dia a dia nos impõe. Nossa resiliência é fruto da necessidade, enquanto tentamos proteger e alimentar nossas famílias.
‘Bombardeio implacável’
Quando a resistência se deflagra, os palestinos costumam ser submetidos aos dedos em riste. São responsáveis por suas próprias mortes, por sua própria existência, pelo seu vasto sofrimento. Mas que opção eles têm?
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Por 16 anos, mais de dois milhões de pessoas em Gaza vivem sob um cerco opressivo que paralisa todo e cada aspecto da vida. Blecautes, cortes de combustível, restrições de ir e vir – a lista não termina. Diante de tamanha adversidade, é razoável pressupor que os palestinos sofram em silêncio, contando as poucas bênçãos que têm, expressando gratidão ao ocupante por mal os deixarem respirar?
Não importa o que os dias nos guardam, os palestinos são assolados por um sentimento profundo de traição pela comunidade internacional. Sentem-se apagados da consciência humana. O mundo escuta o pranto de seus filhos; contudo, mantém-se indiferente.
É particularmente desolador quando vemos a atenção extensa e o meticuloso apoio dado a israelenses e ucranianos. Apesar do suposto princípio universal de igualdade, certas comunidades no mundo têm mais direitos que as outras – mais atenção, mais solidariedade. Enquanto isso, o povo palestino se vê marginalizado e negligenciado diante de sua luta persistente e solitária por justiça.
Para Mohammad (40), que vive no bairro de Rimal, em Gaza, as memórias de 2014 ainda estão frescas em sua mente, muito embora tente dar sentido à chacina corrente.
“Há um bombardeio implacável e esmagador acontecendo ao nosso redor”, disse Mohammad ao Middle East Eye, sobre o mais recente ataque aéreo ao bairro onde morava – uma área absolutamente civil. “A intensidade [dos bombardeios] é inimaginável. É uma loucura, sentimos um odor de pólvora no ar. Nossos filhos nos fazem muitas perguntas, não sabemos responder”.
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Este artigo foi publicado pela rede Middle East Eye em 11 de outubro de 2023. Ghada Abed é jornalista freelance radicado em Gaza.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.