Uma sequência enorme de depoimentos emocionados e indignados passou por um microfone de rua que percorreu a Avenida Paulista e Rua da Consolação, durante cerca de quatro horas de protestos, em meio à multidão que participou do ato contra a guerra de Israel em Gaza no domingo, dia 4 de outubro. Falaram árabes e judeus, ativistas e jornalistas, trabalhadores e estudantes, crianças e artistas, feministas e pacifistas, acadêmicos e influenciadores, líderes cristãos e muçulmanos.
Os atos que se repetem desde o início dos ataques estão reunindo cada vez mais gente, inclusive com grupos e caravanas vindas de outras cidades, à medida em que o evidente processo de genocídio em Gaza enche o mundo de horror.
A limpeza étnica, que há tempos vem sendo denunciada, chegou a um ponto de exibição que as famílias palestinas, geralmente numerosas, estão fazendo troca de filhos entre si como forma de resistir ao desaparecimento de suas descendências. Se uma for eliminada pelas bombas de Israel que estilhaçam Gaza e outra sobreviver, esta cuidará para que a Palestina continue viva com os filhos que ficaram das duas e chorará pelas crianças de ambas que se foram.
As falas na Avenida carregavam a dureza de saber que o martírio está sendo feito por armas, e também por fome, sede, ferimentos graves, cirurgias sem anestésico, e pelas portas e cercas fechadas e guardadas por tanques, soldados e mercenários.
As crianças pedem água e lhes dão água com sal. Parece uma cena cristã das mais terríveis – em vez de água ao martirizado, vinagre. A crueldade humana está exposta como uma ferida purulenta que lança pus e infecção sobre o corpo paralisado da sociedade mundial, contaminando tudo. Estamos virando isso? Se não estamos, não é algo para depois.
Se Gaza afundar, também afundam a ONU, a União Europeia, a Liga Árabe e todas as internacionais e multilaterais que confiavam em levantar o mundo ao seu chamado. Afunda também a ideia de democracia que acalentamos por aqui. E os instrumentos que invocamos para fazer justiça e proteger o planeta. Gaza nos leva a todos e todas. Vence a OTAN, a indústria de guerra, os fanáticos e milicianos. E , afinal, não é esse o projeto que aprendemos a reconhecer na extrema direita no mundo e que enfrentamos no Brasil? De certa forma, Bolsonaro está nos vencendo em Gaza. E por aqui, ainda vivemos a veleidades do protagonismo na luta, que abafa a voz dos protagonistas involuntários desta guerra.
FOTOS: Ato pela Palestina pede o fim da guerra em Gaza e a condenação de Israel
No meio das cismas sobre o futuro que marcaram aquela marcha, houve quem achasse que o modo de homenagear palestinos mortos fosse feito por samba e batucada. Bandeiras palestinas também se viram ao lado de estranhas criaturas embandeiradas. Não havia tempo para elas. A dor não deixou que o samba consolasse o luto e os tambores mais festivos foram ficando para trás. Era puro lamento na Avenida. Cada qual de nós descobrindo a sua alma carpideira. Um luto gritado, de quem ainda está atravessado pela dor dos que estão morrendo sem socorro.
Uma bandeira de Israel foi queimada quando a marcha chegou à Praça Roosevelt. Feita de um material insustentável, plástico, artificial, incompatível com o mundo que busca vida, murcha e agarrada a um mastro como a fugir do sopro do nosso fogo. Ela ardeu sem graça e dignidade. Alguns cantaram o hino nacional, como se quisessem dizer que estamos todos e todas neste país com o mesmo coração doído e disposto. Quem dera! Quem dera este país pulsasse hoje com um coração de estudante. Outros pegaram o microfone para traduzir o principal recado da marcha a quem governa o país e sua diplomacia: Lula, não se demore mais! Traga os que estão em Gaza e ajude a salvar os que não podem sair. Não seja parte alimentadora do genocídio. Rompa os laços e os acordos de guerra e de morte com o Estado de Israel.
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