Este artigo visa debater a “iconização reversa” como parte do mau jornalismo exercido pela mídia hegemônica brasileira no que diz respeito a Palestina, o Estado Sionista e o risco de uma guerra generalizada em todo o Bilad al-Sham.
Das várias situações unusais em andamento no campo midiático e na guerra cultural brasileira está a produção de sentido, narrativa e o pouco de jornalismo produzidos sobre o genocídio palestino em tempo real a partir da destruição de Gaza. Dentro do conceito de “iconização”, temos um dos casos paradoxais na mídia brasileira de um filho da comunidade libanesa que defende Israel e desmerece a história do próprio povo no panarabismo na luta pela construção dos Estados nacionais nos países de cultura árabe ao final do século XIX e primeira metade do XX. Opera, segundo as entidades palestinas, como “um normalizador ilustrado”. Longe de ser exceção, o colunista de O Globo e Globo News é o espelho de famílias libanesas de classe alta e média alta com evidentes inclinações falangistas na guerra civil ou com a direita cristão – aliada de Israel – após os Acordos de Taif.
A reação da liderança palestina foi incisiva, em especial da Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL), fazendo uma análise crítica e verdadeira curadoria das transmissões na mídia brasileira nas 72 horas após o início da Operação Dilúvio em Al-Aqsa. Como já afirmamos em texto anterior, a cobertura não é nem um pouco equilibrada, normalizadora da ocupação e aceita a tese do Departamento de Estado e do Ministério da Defesa sionista que erroneamente compara o Hamas ao Daesh.
As mãos da mídia brasileira estão sujas de sangue palestino
O portal UOL é o de maior audiência da internet brasileira e pertence ao poderoso Grupo Folha. De propriedade da família Frias, tem no jornal Folha de São Paulo o seu veículo líder e costuma se apresentar como porta-voz da direita ilustrada da capital e do estado pauista que concentram mais de 40% do PIB do Brasil (a 12a economia do mundo em 2022).
Em 10 de outubro o UOL trouxe a seguinte manchete: “GloboNews é criticada por Federação Árabe Palestina e Guga Chacra é envolvido em polêmica”.
O trecho específico que critica a emissora líder é esse:
“Por conta da falta de equilíbrio, a Federação Árabe Palestina do Brasil (FFEPAL), tem cobrado espaço no trabalho feito pelos jornalistas e comentaristas da casa. Por meio das redes sociais, a entidade teceu críticas à GloboNews.
A Fepal declarou que em mais de 72h de programação, o canal não abriu espaço ao vivo para a representação palestina no Brasil, ao mesmo tempo que ‘está recebendo líder de igreja da dobradinha fundamentalista sionista-evangélica’.
Sem entender a postura da emissora carioca, a federação apontou o trabalho do veículo de comunicação como uma campanha de demonização dos palestinos.”
Três dias depois em novo pronunciamento a FEPAL foi bastante mais direta, endereçando as críticas ao comentarista já citado. Em 13 de outubro o presidente da Federação deu uma contundente entrevista para o website Brasil 247, dirigido pelo jornalista Leonardo Attuch e uma das mídias alternativas que apoiam o governo Lula. As palavras são realmente fortes:
“Até quando os veículos de comunicação de massa vão continuar nessa narrativa? Isso é genocídio midiático. Cada Guga Chacra desse país está com as mãos manchadas de sangue do povo palestino.
Eu sei que ele [Guga Chacra] não se importa com isso porque ele já manchou a mão de sangue libanes várias vezes, inclusive já foi acusado por libaneses por isso.
Mas custava ele ter um pouco de dignidade e honradez? Não é hora de dizer que o povo palestino merece isso ou aquilo, ou ficar inventando coisas, inventando pseudo razões. Nunca existiu Hamas até recentemente, e o povo palestino está sob extermínio há muito tempo”.
LEIA: Genocídio midiático e holocausto na Palestina
A resposta do referido jornalista, quase um “tipo sociológico” em se tratando de sociologia da mídia brasileira, veio na sequência.
O “especialista midiático” prefere kibeh e esfiha e não a libertação da Palestina
Gustavo Cerello Chacra é jornalista brasileiro de origens libanesas. Radicado em Nova York, vem da classe alta paulistana (a maior concentração do PIB brasileiro) e tem mestrado em relações internacionais pela Columbia University. Considerando o peso da Rede Globo de Televisão e dos canais do conglomerado, especialmente a Globonews (all news, notícias 24 horas), acaba tendo uma difusão superior do que o conjunto dos eruditos nos temas do Mundo Árabe e Islâmico e acima das centenas de professores doutores em áreas afins.
Oi, @GloboNews, tudo bem?
Estamos procurando vocês desde a manhã de ontem, 07, para falar sobre a Palestina.
Vimos inúmeros propagandistas do apartheid israelense entrarem ao vivo diversas vezes.
Não tem espaço para a representação palestina na programação de vocês?
🧶👇
— FEPAL – Federação Árabe Palestina do Brasil (@FepalB) October 8, 2023
Oi, @GloboNews, tudo bem?
Estamos procurando vocês desde a manhã de ontem, 07, para falar sobre a Palestina.
Vimos inúmeros propagandistas do apartheid israelense entrarem ao vivo diversas vezes.
Não tem espaço para a representação palestina na programação de vocês?
🧶👇
— FEPAL – Federação Árabe Palestina do Brasil (@FepalB) October 8, 2023
Alvo de críticas por sua evidente postura pró-sionista, este orgulhoso levantino de família grego-ortodoxa é filho de conceituado médico (um entre centenas de brasileiros com origens libanesas exercendo a medicina no Brasil) e pensa como um francófilo moderno. De uma forma “elegante”, rebateu as duras e corretas palavras proferidas pela liderança palestina desta forma:
“O meu Líbano é o Líbano da paz, o Líbano dos cedros, o Líbano dos montes nevados, o Líbano do mar Mediterrâneo, o Líbano da convivência religiosa levantina, o Líbano do ‘kibeh e esfiha’, o Líbano da celebração da vida. Não é o Líbano da guerra, do extremismo religioso, da intolerância.”
Ou seja, o país dele de origem – e percebam que na postagem na rede social Instagram consta uma foto de seu passaporte (que demora em média cinco anos para chegar a quem o requere, tal é o caso do autor deste artigo) – é uma caricatura despolitizada e sem nenhuma materialidade. Ele, Guga, poderia dizer tudo isso e dizer: “o meu Líbano é o da Resistência, com três vitórias consecutivas contra o inimigo sionista, o país que sofre bloqueio econômico, que tem uma quinta coluna que deseja se entregar aos franceses, mas que ainda assim se recusa a desaparecer, apesar da herança maldita do confessionalismo político, o sistema sectário ratificado pelo ‘mandato francês”. Não, o “especialista árabe” que defende o inimigo sionista, afirma ser a favor de “dois povos, dois Estados” sem falar como, responde que prefere “kibeh e esfiha!”.
Assimetria midiática e determinantes sócio-culturais da iconização inversa
Podemos afirmar que no Brasil o fato de estarmos na periferia do Ocidente aprofunda a condição verificada nos demais países do mundo eurocêntrico. A sociedade civil, o pensamento crítico, a pressão das redes sociais, faz com que a opinião pública seja a favor da Palestina e contra a presença imperial dos Estados Unidos no Bilad al-Sham. Já a opinião publicada, a indústria da comunicação, segue orientações de Washington, logo, reproduzindo os despachos de guerra de Tel Aviv.
O caso narrado neste texto é extremo – pois inverte a posição de um ícone do jornalismo local – e revela as tensões de uma parte da população brasileira. Com origens libanesas, a maior parte da imigração é maronita ou cristã do oriente. Aqui nos misturamos, com as famílias tornando-se majoritariamente “católicas não praticantes”, compostas por comerciantes e profissionais liberais, sendo socialmente brancas em um país estruturalmente racista.
Não era improvável que a produção jornalística subordinada a estas determinantes socioculturais, gerassem algo além da versão árabe-brasileira do fast food. Sem o compromisso da libertação do Levante, da Palestina livre do rio ao mar, simplesmente a tendência a reproduzir o paradigma colonial ocidental é quase inexorável.
Obs: em hipótese alguma estamos desmerecendo “kibeh e esfiha”, longe disso. O problema é a caricatura sobre nós mesmos, feita por um “árabe” tão sionista como a política externa dos EUA.
LEIA: Genocídio na Palestina: jornalistas precisam descolonizar a narrativa dominante
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.