Pluralidade e unidade no apelo ao cessar-fogo em Gaza

o dia 9 de novembro foi realizado, no Auditório Nicolau Sevcenko, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), o Ato Público pelo Fim do Genocídio em Gaza. A organização coube ao Comitê USP pela Democracia e ao grupo de docentes que realizou o Manifesto pelo Fim do Genocídio, assinado por 150 professores, dentre os quais eméritos e titulares, seguidos de mais de 5 mil pessoas on-line.

A mesa que compôs o ato expressou a pluralidade e a unidade em torno do apelo por cessar-fogo imediato e a ajuda humanitária à população hoje sob o cerco das tropas de Israel. Compuseram a mesa o escritor Milton Hatoum, Ualid Rabah presidente da Federação Árabe-Palestina do Brasil, Yuri Haasz, Markus Sokol, Ivan Valente, Valter Pomar, Luciana Genro, a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Raquel Rolnik, os professores da FFLCH Vladimir Safatle, Arlene Clemesha e Everaldo Andrade, a professora Francirosy Barbosa, da USP em Ribeirão Preto, e uma mensagem escrita do professor Paulo Sérgio Pinheiro. Além disso, foram apresentados no ato uma mensagem do professor de Literatura Inglesa em Gaza, Haidar Eid, e um vídeo do professor israelense Ilan Pappé.

Para os organizadores do ato, estamos em um momento histórico em que silenciar equivale a compactuar com um hediondo crime contra a humanidade. Não bastassem os mais de seis mil palestinos mortos na Faixa de Gaza de 2008 a 2022, ou os 1,2 mil israelenses mortos pelo Hamas de 7 a 9 de outubro, o número dos mortos em Gaza na ofensiva em curso atinge as raias da loucura.

Desde o dia 7 de outubro de 2023, já são mais de 11 mil palestinos mortos, 70% dos quais são mulheres, crianças e idosos. Não há palavras que descrevam os mais de quarenta dias seguidos de bombardeios — que incluem acusações reportadas pelo Human Rights Watch do emprego de bombas de fósforo branco (banidas pelas normas internacionais), fato negado por Israel. Os avisos para que os palestinos fujam de suas casas ou abandonem hospitais podem ser entendidos como grotescos crimes de guerra, já que não há mais abrigo ou local seguro na Faixa de Gaza. O ataque, como relatado no depoimento do professor Haidar Eid, combina as características de um genocídio com uma limpeza étnica. Os apelos e votações da ONU foram ignorados mais uma vez pelo estado de Israel.

No momento em que escrevemos este texto, já foram destruídos 45% de todas as unidades residenciais de Gaza, 22 hospitais e 49 centros de saúde, além de 285 escolas e centros educacionais que estão severamente danificados. Não há mais reserva disponível de arroz, açúcar ou azeites (três palavras derivadas do idioma árabe!) e a farinha está racionada. Alimentos perecíveis não podem ser acondicionados e o nível de consumo de água caiu em 90% em relação ao período anterior à ofensiva. Quase metade dos hospitais foi fechada e faltam insumos básicos nos demais. Amputações são feitas sem anestesia, os bancos de sangue foram perdidos, as UTIs e incubadoras para bebês prematuros pararam de funcionar devido à falta de energia elétrica, levando esses pequenos inocentes, um após o outro, à morte completamente evitável. É urgente que se entenda que Gaza colapsou, sobrevivem os mais aptos. Ataques por colonos judeus e mortes de palestinos também se multiplicam na Cisjordânia.

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Os Estados em sua maior parte seguem inertes apesar das enormes manifestações que ocorrem em todo o mundo pelo cessar-fogo. Essas preocupações se fizeram presente nas falas dos oradores.

Para Vladimir Safatle, “não há governo nenhum acima das leis internacionais”, e seria necessária “a desocupação dos territórios palestinos” para alcançar a paz. Raquel Rolnik afirmou a unidade no clamor “pelo cessar-fogo imediato, pela ajuda humanitária, pela defesa incondicional dos direitos humanos”. Luciana Genro (Psol) lembrou o assédio que tenta silenciar as visões não hegemônicas. “Naquele momento, quem ousou falar o que acontece contra civis israelenses, cujas mortes lamentamos profundamente, quem ousou contextualizar o ato, foi taxado de antissemita.”

Yuri Haasz, membro do Vozes Judaicas por Libertação, fez um depoimento pessoal e comovente: “Sou judeu israelense, nasci e cresci em Haifa. Estou aqui para cumprir uma função importante, dizer que Israel não representa todos os judeus. Instituições sionistas não representam todos os judeus. Vendo os fatos em campo, não temos outra opção a não ser colapsar a mitologia nacionalista para qual fomos educados e treinados”, argumentou. Em seguida, afirmou: “O grupo do qual faço parte não é só no Brasil, existe no mundo todo. Reconhecemos que Israel nasce de uma limpeza étnica, a Nakba continua até hoje. Israel se configura como Estado de apartheid. Não conseguimos reverter essa estrutura de dominação que viola direitos humanos”.

Para o historiador Valter Pomar, deve-se reconhecer o que está na lei internacional. “Israel é uma força de ocupação. Nós não devemos titubear”. Disse ainda que “é necessário mais mobilização, assim como o governo precisa escalar na reação aos atos de terrorismo e de ingerência de Israel no Brasil. O embaixador tem compartilhado a mesa com a extrema direita e dado declarações que, em qualquer país razoável, seria pessoa não grata. É necessário romper relações porque Israel virou instrumento de brutal repressão”.

Ualid Rabah ressaltou a perseverança do povo palestino, que sofre há 75 anos os efeitos devastadores da Nakba e não desiste de clamar e de lutar por seus direitos internacionalmente reconhecidos. Francirosy C. Barbosa, por sua vez, com palavras tocantes, lembrou a condição da mulher palestina vivendo sob bombardeio na Faixa de Gaza. “Mulheres, mães, enterrando filhos que gritam que eles não comem. Se as pessoas não conseguem ver o que acontece, é falta de informação ou falta de misericórdia, de coração”.

Markus Sokol destacou que apesar da sua origem judaica, isso não lhe dava qualquer privilégio no debate, ao condenar igualmente a morte de crianças no gueto de Varsóvia e as das milhares de crianças em Gaza. Para ele, a criação artificial de Israel dividiu árabes e judeus palestinos desde 1947. Por isso é necessário um Estado democrático único e laico na Palestina para garantir igualdade e respeito a todas as populações da região, árabes e judeus.

Ilan Pappé, um dos principais defensores da Campanha Internacional “Por um Estado Democrático na Palestina”, enviou uma mensagem gravada especialmente para o ato, onde enfatizou a ideia de que apenas a criação de um Estado único laico e democrático poderá resolver de fato o conflito e trazer uma paz duradoura para a região. Uma declaração dessa iniciativa, intitulada “Parem o Genocídio em Gaza”, foi distribuída aos presentes.

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Seria impossível reproduzir todas as falas, mas vale dizer que, com suas diferenças e especificidades, todas clamaram em uníssono pelo fim do ataque. Ações concretas, como a revogação imediata de todos os acordos militares e de segurança já firmados com o Estado de Israel, teriam o efeito de sinalizar que não estamos dispostos a compactuar com o crime contra a humanidade em perpetuação na Faixa de Gaza. A suspensão das relações diplomáticas tem sido posta em prática por um número cada vez maior de países ao redor do mundo, como forma de repúdio ao “espetáculo grotesco” como foi descrito o ataque à Faixa de Gaza.

Como disse o professor Paulo Sergio Pinheiro no pronunciamento enviado e lido durante o Ato, “a USP não poderia ficar em silêncio diante desse genocídio (…). Aderindo ao coro mundial de defesa dos palestinos, os professores da USP põem em prática a defesa dos princípios humanistas que regem a Universidade”.

Assista ao evento na íntegra no canal do YouTube da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Publicado originalmente em Jornal da USP

 

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