Um livro intitulado “Meia-noite no Mavi Marmara: O ataque à Flotilha da Liberdade e como mudou o curso da questão palestina” (tradução livre) consiste de 48 ensaios compilados pelo autor e professor árabe-americano Mustafa Bayoumi. Seus relatos diversos, publicados apenas três meses após o ataque, sobre a flotilha humanitária a Gaza alvejada por comandos israelenses em alto-mar, desmontam as justificativas do Estado colonial para sua violência e analisam com profundidade as ramificações da campanha na política internacional.
Em sua introdução, escreve Bayoumi: “Mesmo se os israelenses tivessem confiscado todos os registros do evento, em seus esforços desesperados para controlar a narrativa, não poderiam confiscar a memória das pessoas”.
Mais de 13 anos após o ataque contra o Mavi Marmara, forças israelenses recentemente destruíram um monumento no porto de Gaza erguido para honrar as vítimas do episódio em questão, ao empregar não apenas seu genocídio contra a população do território mediterrâneo, como também esforços notórios de memoricídio.
Em 31 de maio de 2010, o navio com carga humanitária e destino a Gaza, cuja campanha foi organizada pelo Movimento Gaza Livre e pela Fundação de Assistência Humanitária da Turquia (IHH), foi interceptado pela Marinha de Israel. Dez passageiros — cidadãos turcos — foram mortos pelos agentes da ocupação; outro faleceu de seus ferimentos.
O movimento de 12 metros de altura, em sua memória, foi explodido pelas forças da ocupação.
As vítimas e famílias do Mavi Marmara levaram o caso ao Tribunal Penal Internacional (TPI). Em 14 de maio de 2013, uma petição foi encaminhada à corte em Haia em nome de Comoros, onde estava registrado o Mavi Marmara, contra diversos políticos e comandantes israelenses. Entre os citados, estavam o falecido Shimon Peres, presidente de Israel na ocasião, e o então e atual premiê Benjamin Netanyahu, ambos acusados de crimes de guerra e lesa-humanidade.
Em sua primeira decisão sobre o caso, em 6 de novembro de 2014, a então promotora-chefe de Haia, Fatou Bensouda, declarou que Israel, sim, cometeu crimes de guerra, ao caracterizar o ataque como “assassinato deliberado, causando graves traumas e prejuízos à saúde e à dignidade humana”. Apesar de encontrar e reconhecer as provas, a corte se recusou a abrir uma investigação sobre o caso em particular, ao negar “gravidade” suficiente para justificar sua intervenção. Após um recurso dos advogados das vítimas, o tribunal declarou que a promotora cometeu um erro.
Para além do caso do Mavi Marmara, o mundo assiste hoje os horrores do genocídio contra a população civil de Gaza, em violação aberta dos direitos fundamentais de milhões de pessoas devido ao cerco e aos incessantes bombardeios, incluindo a recusa de assistência humanitária imediata à população carente. Testemunhamos um exército fascista agir impunemente diante dos olhos de todo o mundo. Foi amplamente documentado ataques de fósforo branco por Israel contra áreas densamente povoadas no norte de Gaza, em desrespeito flagrante às leis internacionais. Como se não bastasse, líderes israelenses deram declarações diretas indicando dolo e anseio para novas ofensivas.
Com os alertas israelenses para que mais de um milhão de pessoas deixassem suas casas no norte de Gaza, em 13 de outubro, ataques contra civis apenas se intensificaram. Mais de dois milhões de pessoas em Gaza sofrem sob disparos, sem água, comida, luz ou medicamentos. Segundo o Ministério da Saúde palestino, mais de 14 mil pessoas foram mortas pelos bombardeios, incluindo 6.150 crianças e quatro mil mulheres.
Na comunidade internacional, o ataque israelense ao Hospital Baptista al-Ahli, deixando centenas de mortos, foi visto como um divisor de águas. Israel, porém, insiste em ignorar os alertas e apelos da Organização das Nações Unidas (ONU) e outras instituições internacionais contra seus crimes desumanos perpetrados em Gaza. Alimentos, água, luz e outros insumos básicos ainda não podem entrar no enclave sitiado. A população civil, sobretudo mulheres, crianças e idosos, que deveriam ser protegidos dos traumas da guerra, estão justamente no centro da brutal e desproporcional ofensiva.
As regras de conflito armado são determinadas pelas Convenções de Genebra de 1949, ratificadas pelos Estados-membros das Nações Unidas e corroboradas por decisões de cortes relevantes. A Lei Humanitária Internacional consiste de uma série de convenções que regulam a tratativa de soldados, civis e prisioneiros de guerra.
A Quarta Convenção de Genebra se concentra na “proteção de indivíduos civis em tempo de guerra”. Este contrato, em termos de conteúdo, se refere aos direitos universais de populações civis. Segundo o Artigo 18 da convenção relevante: “Hospitais civis estabelecidos para cuidado de feridos, doentes, deficientes e grávidas jamais devem ser atacados”.
As normas da lei internacional requerem das partes em conflito que deem alerta preventivo efetivo sobre eventuais ataques a áreas convencionalmente civis. A obrigação de advertências prévias, capazes de serem cumpridas, é uma regra consolidada que antecede a atual Lei Humanitária Internacional, reconhecida pelo Código Lieber de 1863, pela Declaração de Bruxelas de 1874 e pelo manual de regras sobre conflito armado publicado pela editora da Universidade de Oxford em 1880.
Além disso, não dar aos civis tempo e recursos suficientes para sua evacuação faz com que qualquer legitimidade do alerta seja nula. Não obstante, é absolutamente impensável pressupor que civis que não consigam deixar suas casas e hospitais se tornem automaticamente “alvos legítimos”. Mesmo que não deixem a área, ainda lhes cabe a proteção das normas internacionais. Alertas não bastam e o exército israelense tem o dever — reforçado por seu caráter como potência ocupante — de assumir todas as medidas possíveis para proteger os civis e suas propriedades no contexto de guerra.
Como resultado, parece que a população civil, que deveria estar alheia aos efeitos devastadores do campo de batalha, conforme as regras da Lei Humanitária Internacional, se tornou na prática o alvo exato da campanha israelense. Bombardeios que incorrem no assassinato em massa de civis, cortes de energia elétrica e água e destruição de hospitais e outras instalações de serviços básicos são violações flagrantes da lei internacional. A comunidade internacional precisa assumir um papel mais proativo em superar o estado de guerra, levando em conta as maiores vítimas dos crimes de ocupação e genocídio perpetrados por Israel: a população civil da Palestina.
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