Protestos contra genocídio em Gaza podem mudar o jogo

Nidaa Sisalem Aleman não dorme há semanas. Como cidadã anglo-palestina de Gaza, tenta desesperadamente resgatar sua irmã e sua mãe, aos 80 anos de idade, do território sitiado, desde o início da ofensiva israelense ainda em curso, em 7 de outubro. Os familiares de seu marido também estão lá. Muitos foram mortos.

Pude entrevistá-la à véspera de um protesto “die-in” por Gaza na região de Brighton, no qual mais de cem pessoas nas ruas cobertas com lençóis brancos, em referência aos mortos pelo genocídio israelense, junto de canções e poesias.

Em Gaza, parece que os horrores de ontem são sempre um antepasto aos crimes hediondos de amanhã, somados à escuridão e ao isolamento, à medida que Israel cortou todo o acesso a internet e mesmo a energia elétrica. De longo, o mundo assiste indiferente.

“É terrível”, diz Nidaa. “Não consigo falar com minha família. Toda manhã tenho de acordar muito, muito cedo para tentar falar com eles … mas não tem internet ou telecomunicações, os israelenses cortaram”.

Sua mãe, paciente de problemas renais, vive em Sabra, na região oeste de Gaza. Em 15 de  novembro, um ataque israelense atingiu a mesquita local, matando 50 pessoas. Diante da escalada contínua, Nidaa convenceu a mãe a ir para o sul. Não há táxi, mal há combustível, então tiveram de andar.

“Ela andou seis horas ou mais. Caiu duas vezes porque os israelenses atiravam nas pessoas para assustá-las, atiravam em suas pernas. Soldados riam quando ela caia e se minha irmã tentasse ajudá-la, eles berravam para impedi-la … Quem levasse comida — pão, chocolate, salgadinho para as crianças, qualquer coisa — recebia ordens para jogar fora. Minha irmã disse que, no caminho ao sul, havia muita comida no chão — farinha, pão, biscoitos, tudo mais. E ninguém podia comer enquanto caminhava”.

Sua mãe está agora em Deir al-Balah, lar de um cemitério da comunidade britânica para as tropas indianas que lutaram contra os otomanos na Primeira Guerra Mundial. Boa parte da família foi morta ao tentar escapar de suas casas, logo após Israel ordenar que saíssem. Um senhor idoso abriu sua porta com sua neta deficiente nos braços e a nora ao seu lado, com uma bandeira branca contra o vento. Foram mortos a tiros.

“Ninguém consegue ajudá-los há mais de uma semana, quem sabe 15 dias. Não tem Cruz Vermelha, não tem Nações Unidas, não tem ambulância. Três corpos ficaram no caminho, todos os outros estão feridos”.

Aqueles que acompanham as guerras no Oriente Médio há décadas testemunharam vários ataques hediondos contra civis, desde a Segunda Guerra do Golfo — com bombardeios dos Estados Unidos a milhões em Bagdá, em frente e atrás das câmeras — às guerras na Síria e no Iêmen. Agora Gaza.

Protestos globais

Mais uma vez, são nossos governos ocidentais que dão suporte à guerra de extermínio de Israel. E como 20 anos antes, na ocasião da invasão militar ao Iraque, milhões de cidadãos foram às ruas para protestar contra mais uma guerra lançada em seu nome.

Gaza é também arena de um confronto de narrativas — governos contra seu povo, imprensa corporativa contra a realidade em campo. A chamada grande mídia mantém seu viés a favor de Israel, enquanto milhões enxergam a desproporção dos ataques a Gaza.

Na semana passada, um grupo de 50 pessoas dirigiu seus carros à ponte que liga Oakland a San Francisco, na Califórnia, em plena hora do rush. Então desligaram o motor e atiraram as chaves na baía, ao obstruir o tráfego por horas. “Ao menos 15 manifestantes se cobriram de trapos e deitaram em frente aos veículos, representando os mortos de Gaza”, relatou o The New York Times.

No estado de Washington, em 7 de novembro, centenas de ativistas pró-Palestina tomaram o porto de Tacoma para impedir a saída de um navio carregado com armas americanas com destino a Israel.

“Queremos um cessar-fogo já! Queremos que parem de assassinar as pessoas. Queremos uma averiguação verdadeira e ações práticas sobre a política externa e o investimento dos Estados Unidos a Israel”, reivindicou Wassim Hage, coordenador do Centro de Recursos e Mobilização Árabe, um dos grupos responsáveis pelo ato em Tacoma.

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Outros grupos bloquearam portos para impedir o envio de armas a Israel, desde Califórnia a países como Bélgica, Austrália e Reino Unido. Tais ações diretas foram eficazes em dificultar a exportação de armas ou mesmo minimizar sua escala.

Enquanto nossas elites políticas dão carta branca à guerra de extermínio de Israel contra os 2.4 milhões de palestinos em Gaza, outros milhões em todo o mundo protestam e realizam atos efetivos, também nos terminais de trânsito de grandes metrópoles como Nova York e Londres. Apesar da repressão, as ações parecem varrer as cidades europeias e americanas.

Para os milhões que saem às ruas, é o exemplo mais claro de uma potência militar travando uma guerra aberta contra um povo indefeso, com apoio de ditas “democracias”, contra tudo aquilo que alegam defender.

Cobertura de mídia

Diante de oposição em massa ao genocídio, formadores de opinião e jornalistas corporativos buscam retratar a agressão israelense como um mero embate com o grupo Hamas. Jonathan Freedland, em sua coluna semanal ao jornal britânico The Guardian, parece ter encarnado o próprio Mark Regev,  porta-voz da propaganda sionista, ao alegar se tratar somente de uma guerra contra uma seita jihadista que “deve ser derrotada”, sem jamais mencionar discursos abertamente genocidas de figuras do regime israelense.

Da mesma forma, logo ao começar cada uma de suas transmissões, o apresentador Piers Morgan exige de seus convidados que condene o Hamas. Instruções como essa, contudo, jamais são proferidas a eventuais entrevistados sionistas — apesar de Israel nitidamente empregar métodos terroristas para expulsar a população de Gaza. O eminente deputado Jeremy Corbyn, difamado como “antissemita” há anos por seu apoio aos palestinos, foi a mais recente vítima dos arroubos autoritários de Morgan. Ao contestar a perspectiva do âncora, recebeu gritos como resposta.

Um repórter que trabalha em um grande jornal do Reino Unido me relatou nesta semana quão flagrante é o fato de que todos os colunistas que escrevem sobre Gaza são sionistas, enquanto não há um único articulista árabe ou palestino sobre o assunto em sua redação. Todavia, pouco importa a artilharia midiática, a população comum parece entender o que está vendo — o assassinato em massa de crianças e civis — e compreender, sem qualquer dúvida, que trata-se de algo fundamentalmente errado.

Qualquer um que testemunhe os incidentes com seus próprios olhos pode ver que Israel reforça sua Nakba — em árabe, “catástrofe” — contra os palestinos, ao recorrer a todo e qualquer pretexto para destruir escolas, hospitais e campos de refugiados. Até mesmo a rede estatal BBC foi forçada a desmentir as alegações quase cômicas do exército colonial sobre o Hospital al-Shifa, maior centro de saúde de Gaza, invadido e destruído a olho nu, com centenas de feridos e bebês prematuros deixados para morrer.

Diferente do Iraque, o público ocidental agora pode ver os horrores perpetrados por Israel em Gaza. Através de transmissões ao vivo nas redes sociais, via telefone celular, ativistas e repórteres compartilham vídeos, imagens e histórias que transcendem a censura da mídia corporativa. Todos nós vemos o horror.

Neste entremeio, a classe política anglo-americana parece mais alienada do que nunca da repulsa instintiva de milhões de cidadãos comuns diante das atrocidades realizadas contra civis, em maioria mulheres e crianças, que já sofrem há anos com o cerco e a ocupação.

Em 2003, no Reino Unido, os protestos contra a guerra foram organizados sobretudo pela coalizão Stop the War coalition, com forte presença trabalhista. As marchas de hoje, cada vez mais orgânicas e descentralizadas, envolvem jovens de todas as origens — incluindo judeus e muçulmanos lado a lado. Trata-se de um movimento de base genuíno. Ativistas palestinos de longa data — há muito ignorados — renovaram seu entusiasmo ao dar as mãos a mobilizações jovens espontâneas em cidades e universidades de todo o mundo.

Suella Braverman, ex-secretária do Interior do Reino Unido, recém-demitida, respondeu ao movimento popular e pacífico ao incitar turbas de extrema-direita a atacá-los, por meio de um espaço que lhe foi concedido no jornal The Times. A imprensa conservadora lhe deferiu apoio, como a diversas campanhas e políticos racistas que a antecederam.

Ainda é o começo, mas há um sentimento de que o movimento contra o genocídio realizado por Israel em Gaza possa desestabilizar a elite político ocidental de viés sionista, militarista e colonial, que se mantém intacta, em boa parte, apesar dos sucessivos desastres e fracassos em países como Iraque, Líbia e Afeganistão.

Medo e delírio

Vemos hoje no desgosto das elites contra um movimento de massa, liderado sobretudo por uma classe trabalhadora pós-colonial e uma nova geração de ativistas, o quão ameaçadores tais protestos parecem ser ao establishment ocidental.

Políticos britânicos, incluindo o líder da oposição trabalhista, tentam se vitimizar ao alegar que piquetes foram formados em frente a seus gabinetes, muito embora as manifestações se mantenham pacíficas. Nenhum deputado foi atacado, embora insistam em condenar as demandas de seu próprio eleitorado, reiteradas por cartas, e-mails e protestos.

O público espera que seus representantes escutem seus apelos e se oponham ao genocídio e à limpeza étnica realizada por Israel na Faixa de Gaza, via esforços políticos e diplomáticos por um cessar-fogo de caráter definitivo. Trata-se de algo bastante razoável.

Nidaa, como muitas cidadãs anglo-palestinas, participou das marchas e vigílias perto de sua casa. Nidaa não se identifica como uma pessoa politizada, mas a situação parece exigir uma postura diferente.

“Agradeço muito o que as pessoas estão fazendo. Elas saem em protesto todo sábado, sem falta. Mas o governo se recusa a escutar. Queremos apenas um cessar-fogo. Basta! Quantas crianças mais vão precisar morrer? Eles querem matar todos nós, milhões de pessoas?”

Protestos sozinhos podem não ser capazes de impedir a guerra, mas podem contrapor a propaganda e o apoio político às atrocidades e responsabilizar líderes que alimentam ou apoiam o militarismo no exterior.

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Em 2003, o então premiê Tony Blair, mentor e herói do atual líder trabalhista Keir Starmer, ignorou os protestos contra a cumplicidade britânica na invasão americana ao Iraque. Sua carreira, entretanto, sofreu danos irreparáveis. Em 2006, bateu os tambores para Israel em sua ofensiva contra o Líbano e foi forçado a renunciar. Como destacou um artigo da época, seus colegas trabalhistas se voltaram contra Blair por “negar-se a criticar a estratégia ou as táticas de Israel no Líbano ou pedir um cessar-fogo imediato”. Parece familiar.

Mais de meio século atrás, a guerra dos Estados Unidos no Vietnã galvanizou um movimento global contra o militarismo e o imperialismo e radicalizou a vida política no mundo ocidental. À medida que suas taxas de aprovação desabavam e seu controle sobre o Congresso caía aos pedaços, o presidente americano Lyndon B. Johnson comentou a sua esposa, em 1967: “Não posso sair, não posso terminar as coisas. O que é que eu vou fazer?”.

Um ano depois, renunciou.

Joe Biden, Rishi Sunak e Keir Starmer — estejam atentos.

Este artigo foi publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 22 de novembro de 2023.

 

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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