Qual o papel da arte em tempos de conflito? Pensei um pouco sobre isso durante o festival ao ar livre conhecido como Manar Abu Dhabi, com curadoria de Reem Fadda e Alia Zaal Lootah, realizado entre 15 de novembro de 2023 e 30 de janeiro de 2024.
Reem Fadda prepara um delicioso macarrão com abobrinha. “Eu costumava fazer tudo do zero, mesmo a massa, mas não tenho mais tempo”, observou a diretora da Fundação Cultural Abu Dhabi enquanto jantávamos às vésperas do evento. “Aprendi a fazer macarrão assim há alguns anos. Sabe? Muito antes do covid nós tivemos uma coisinha chamada Segunda Intifada”, brinca minha anfitriã, com certo pesar. “Estávamos sob toque de recolher de Israel, então tínhamos tempo sobrando nas mãos”.
De forma geral, o mundo da arte contemporânea não parece predisposto a falar de política na hora do jantar. Ao menos não no mundo ocidental. Exceto caso conheça muito bem quem está do outro lado da mesa. Nos dias de hoje, nada parece mais divisivo que a ofensiva israelense em Gaza. “Nunca fale de política, se atenha a arte e vai ficar tudo bem” — parece ser o mantra dos últimos meses.
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Ao viajar por diferentes feiras de arte em Londres, Paris e outras cidades nos últimos dois meses, é evidente que a ampla maioria das instituições, curadores, colecionadores e visitantes querem se distanciar tanto quanto possível da vida política. Na Europa, o mundo da arte decidiu ser tão neutro quanto possível, diferente do mercado editorial cujas organizações e autores passaram a debater calorosamente — sobretudo, nos casos da Feira de Arte de Frankfurt, na Alemanha, e da Feira de Artes Gráficas de Lucca, na Itália.
Contudo, em países árabes como os Emirados Árabes Unidos é realmente possível que o mundo da arte sobreviva em uma bolha? Enquanto parte do público espera que as manifestações artísticas promovam um reflexo de seu tempo, outros desejam consolo — uma espécie de cura escapista para os horrores da humanidade.
Arte, entretenimento e caminho adiante
Quando soube que a edição inaugural da Manar Abu Dhabi teve como tema técnicas de iluminação, pensei imediatamente na ideia de arte como entretenimento. No Golfo, costumamos tratar da arte como decoração, a fim de ornamentar seus ostentosos cenários. E muito embora seja essa a intenção, ao identificar os autores e ler sobre seu processo, percebi que havia várias camadas para a leitura de suas obras.
Por exemplo, os vídeos abstratos e noventistas da artista palestina Samia Halabi. Embora sua expressão artística e seu ativismo pareçam apartados, seu trabalho se mostra imbuído de certo sentimento de esperança coletiva.
Outro exemplo é a artista taiwanesa Rain Wu, cuja obra será aberta ao público em dezembro no Parque Jubail. Sua instalação imersiva denominada “Um só com solo, um só com as nuvens” trata de efemeridade, mas foi inspirada de fato por uma conversa que teve com um motorista de táxi durante uma viagem à Palestina.
Vale ressaltar que peças comissionadas, projeções e esculturas de luz e outras obras imersivas não têm como público turistas estrangeiros. Segundo Fadda, seu público-alvo são os residentes locais. “É isso que significa arte pública”, argumentou a curadora.
As obras mais impressionantes certamente são aquelas instaladas na Ilha Lulu. Por exemplo, o trabalho do artista Lozano-Hemmer, criador da “Ilha da Tradução”, uma série de dez enormes obras multimídia interativas, conectando espectador e paisagem via áudio, vídeo e iluminação. “Digo que o trabalho dessa obra é inversamente proporcional a meu ego”, brinca o artista enquanto caminhamos nos jardins de luzes.
Outro trabalho extraordinário é a paisagem lunar na Ilha Fahid, criada por Jim Denevan. Sob o título de “Auto-similar”, sua monumental instalação abarca 448 pirâmides e monte, compreendendo um cenário para além do tempo e do espaço. Ambas as obras são capazes de levar o espectador a um outro mundo de beleza e possibilidades, onde a utopia, a convergência e a diversidade são possíveis.
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A utopia universalista de Abu Dhabi
De volta ao jantar, Reem Fadda olhava sem parar à tela de seu telefone. “Uma amiga está vindo, quero guardar a cadeira”. Sua amiga, Galit Eilat, não demorou a chegar. Fadda recebeu Eilat e nós nós sentamos, então seguiu a apresentá-la:
— Rain, conheça Galit
— Oi, Galit.
— Carsten, conheça Galit.
— Oi, Galit.
— Jornalistas, esta é Galit.
— Oi, Galit.
Então se voltou a nós com um sorriso bem-humorado. “Que foi? Estou fazendo meu trabalho: apresentando os curadores aos artistas”. Fadda e Galit são responsáveis pela Bienal de Arte de Abu Dhabi. Parece ser essa a intenção do emirado: levar um sentimento de utopia ao mercado da arte, ao ter uma curadora palestina, Reem Fadda, e outra israelense, Galit Eilat, trabalhando juntas. Dada a conjuntura atual, a bienal vai acontecer. Sim, reafirmam que sim. Fadda e Eilat já colaboraram antes e os eventos em curso não mudarão isso porque são amigas.
A visão emiradense é também evidente na chamada Casa da Família de Abraão, uma instalação que reúne mesquita, igreja e sinagoga em um mesmo complexo. Mais do que um local de culto, é um espaço institucional. Trata-se de um ambiente político, é claro; entretanto, não deixa de ser fascinante.
Outro espaço cultural onde se tenta projetar essa visão universalista, desta vez no espírito dos Lumières da França, é o Museu do Louvre de Abu Dhabi, onde visitantes podem participar de performances ao produzir “cartas de luz”, em referência à mitologia abraâmica. A coleção contém livros de diferentes períodos históricos, reunindo tradições das três grandes congregações monoteístas do Oriente Médio.
No fim, tudo é o momento
Embora nem sempre a arte seja política, os artistas definitivamente são. Para alguns deles, a guerra e o exílio são temas essenciais.
Na orla de Abu Dhabi, há uma obra extraordinária da artista tunisiana-ucraniana Nadia Kaabi-Linke chamada “Bait al-Nur”. A ideia é trabalhar com a forma da sombra nas diferentes horas do dia, de modo que, metaforicamente, compartilhemos a mesma luz, embora sua projeção sobre nossos corpos e nossas idiossincrasias possa divergir. Perguntei a Kaabi-Linke sobre a situação em Kiev.
“Ainda é muito ruim”, respondeu. “Tenho família lá e eles ainda sofrem com os bombardeios. Mas não é nada comparado a Gaza. Não consigo deixar de pensar nas crianças de Gaza. E a pior parte é que parece que não podemos falar disso no mundo da arte”.
Apesar da aparente displicência do mundo da arte contemporânea, na avenida Alserkal de Dubai, não muito longe dali, algumas exposições tratam do massacre contra o povo palestino. Uma delas é a exibição “Nesta Terra”, realizada pelo Museu Palestino em parceria com as Fundações Barjeel e Alserkal.
A curadora e escritora Nadine Khalil recentemente fez um tour artístico em Alserkal e comentou que gostaria de ver mais exposições nos Emirados que lidem diretamente com questões atuais. “Em Alserkal, há somente uma exposição sobre Palestina. No fim do dia, no entanto, sabemos que tudo fala sobre sua época”.
E ela tem razão. Tudo fala sobre sua época. De fato, nosso momento histórico não consegue ignorar os horrores da guerra e do extermínio e a forma como seres humanos buscam responder às atrocidades com coragem, esperança e inventividade criativa.
O que tenta nos derrubar, nos torna mais fortes
Muitas das obras da Manar Abu Dhabi são carregadas de esperança. Na orla emiradense, há uma escultura sobre as águas criada por um coletivo de jovens artistas nascidas no país: Ayesha Hadhir, Rawda al-Ketbi e Shaikha al-Ketbi. É uma escadaria de luz que leva ao firmamento, à noite, ao desconhecido. Alguns diriam, uma escadaria para o paraíso — quem sabe, com um trono promissor em seu remoto topo.
Outra obra é de autoria de Shilpa Gupta, dizendo em três idiomas: “O horizonte dentro de nós”. A ideia é nos lembrar que, em momentos de angústia e desespero, precisamos encontrar alguma luz dentro de nós, não apenas para nos ajudar a reagir, como para buscar a devida justiça.
Um evento que capturou bem o momento que vivemos coletivamente foi a performance de Samia Halabi. Já com seus 80 e poucos anos de idade, Halabi é uma pioneira da pintura abstrata e figura central na arte palestina. Sua carreira remete à década de 1950, acompanhada de um forte compromisso com a libertação de seu país. Halabi produziu na ocasião uma peça abstrata em vídeo que interagia com áudio ao vivo. Som e imagem entrelaçados no subconsciente. A artista vestiu para tanto um tradicional vestido palestino e não hesitou em falar ao público: “Seria um crime ficar em silêncio. Seria um crime não mencionar Gaza”. Então relatou a imensurável perda de vidas e da infância para os ataques de Israel, assim como o heroísmo dos trabalhadores humanitários, jornalistas e médicos. “Aqueles que acolhem aqueles que perderam suas casas, aqueles que compartilham o pão”, reafirmou. “Vejo um povo lindo. Preciso que todos vocês se lembrem da Palestina, que falem da Palestina. Jovens no TikTok e Instagram, continuem postando, continuem falando”.
Haladi sumarizou então o papel da arte em tempos de conflito: “Hoje vocês vão ver algo bonito e vai parecer otimista a vocês. Não é contraditório o que vou lhes dizer. Estou furiosa, estou machucada, mas mantenho minha esperança. O que está em nós, o que tenta nos derrubar, nos torna mais fortes”.