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O imperador e o elefante: Cristãos e muçulmanos na era de Carlos Magno

Autor do livro(s) :Sam Ottewill-Soulsby
Data de publicação :Julho de 2023
Editora :Universidade de Princeton
Número de páginas do Livro :392 páginas
ISBN-13 :978-0691227962

Carlos Magno, o rei franco do século VIII, detém um status quase mítico na historiografia da Europa – considerado um vigoroso defensor da Cristandade contra o império islâmico em expansão. Além disso, seu papel na unificação da região consolidou sua reputação como “Pai da Europa”. Ao aglutinar com êxito partes consideráveis da Europa Ocidental, Carlos Magno alcançou um êxito jamais visto desde a queda do Império Romano. Seu legado perdura até os dias de hoje. Que seu avô, Carlos Martel, tenha saído triunfante de uma batalha decisiva contra as forças islâmicas no atual sul da França, no ano 732, apenas valorizou seu pedigree.

O legado duradouro da dinastia carolíngia – isto é, os descendentes de Martel – costuma, no entanto, ser mal interpretado, tanto no passado quanto no presente, ao tratar do imperador como um “dedicado inimigo dos muçulmanos, com um pedigree que se arrasta até os anos remotos da Alta Idade Média”. Por outro lado, os carolíngios e seu legado foram apropriados pela extrema-direita e por supremacistas brancos que pregam sentimentos contra migrantes e refugiados, sobretudo muçulmanos, no Ocidente.

Não obstante, Sam Ottewill-Soulsby – historiador especializado na Antiguidade Tardia e no primeiro período da Idade Média –, em seu novo livro, intitulado no original em inglês The Emperor and the Elephant: Christians and Muslims in the Age of Charlemagne, apresenta um ponto de vista mais complexo sobre a relação entre Carlos Magno e o mundo islâmico.

O título é uma referência a um presente opulente e magnífico – um elefante chamado Abul Abbas – consagrado a Carlos Magno, entre muitos outros tesouros, entre as quais, um raro relógio mecânico, anos depois de ser coroado Imperador dos Romanos. O elefante serviu de reconhecimento e sinal de respeito de seu contemporâneo abássida, o califa Harun al-Rashid – quem sabe, mais célebre no Ocidente por ser um personagem da lendária coletânea das Mil e uma noites.

Segundo consta, Carlos Magno retribuiu o favor ao presentear o califa com o equivalente em ouro e outros presentes. Este escambo foi um jogo de poder entre os governantes de então, em particular, considerando a conotação nobre do elefante para ambos. Que o rei europeu manteve o nome Abul Abbas a seu mascote “diz muito sobre a importância de preservar um imaginário exótico e estrangeiro” dentre a corte.

Ottewill-Soulsby argumenta que o comportamento de Carlos Magno sobre o mundo islâmico é mais complexa do que simples oposição binária. Além de seu engajamento militar contra os “sarracenos”, Carlos Magno buscou se envolver ativamente em esforços diplomáticos. De fato, sua diplomacia não era em si monolítica, dado que os carolíngios logo encontraram um “mundo islâmico multipolar”, incluindo os abássidas, que haviam suplantado os omíadas – cujas reminescências construíram um califado rival em Córdoba, na Espanha islâmica. Havia outras potências islâmicas no Norte da África e no Mar Mediterrâneo, como os idríssidas, os aglábidas do Magrebe e as cidades-estado do sul da Itália. Contudo, para tais entidades, “a proximidade não fazia da diplomacia algo automático”.

Encontros entre governantes francos e inúmeras dinastias islâmicas que competiam entre si constituíram a base deste livro, à medida que o autor decidiu contestar narrativas existentes com enfoque em “privilegiar a perspectiva carolíngia”, sobretudo à predominância de fontes europeias sobre o período quando comparadas às fontes em árabe. Ottewill-Soulsby buscou também contrapor escritos prévios sobre a matéria, alguns dos quais argumentaram a favor de uma noção simplista de “um sistema de aliança entre os abássidas e carolíngios contra os bizantinos e omíadas”.

Para o autor, as interações de Carlos Magno com os abássidas divergiam substancialmente de seu relacionamento com seus vizinhos omíadas na Andaluzia. Isso se deve ao fato de que os abássidas eram um poder distante, portanto, engajado em “diplomacia de prestígio” com o reino dos francos, o que Ottewill-Soulsby descreve como um desejo dos governantes de preservar suas respectivas posições domésticas e aprimorar certa reputação internacional como estadistas de então. Os contatos com os omíadas, por contraste, ocorriam na forma de uma “diplomacia de fronteira”, considerados, portanto, uma ameaça constante logo ao sul – visão compartilhada sobre os francos pelos muçulmanos na Espanha.

Em suma, a diplomacia com o califado abássida decorria de uma escolha para fins sobretudo de relações públicas, enquanto as interações com os omíadas eram matéria de necessidade para segurança e estabilidade regional. No entanto, reafirma o autor: “Isso não significa que não havia sobreposição entre ambas as categorias”. Um argumento interessante é então citado ao comparar a influência imperial dos romanos e persas sassânidas com seus respectivos sucessores, dado que ambos os impérios antigos tinham uma imponente noção das benesses de projetar poder “ao receber dignitários de terras distantes”.

O capítulo que detalha a diplomacia entre abássidas e carolíngios foi o mais intrigante em minha leitura, em parte devido ao presente mencionado no título, mas também por causa dos exemplos de diplomacia direta e facilitada entre as partes – fáceis de compreender no cenário contemporâneo. Por outro lado, os dois capítulos dedicados aos laços diplomáticos com os omíadas são mais intrincados e complexos, com exemplos mais opacos. Isso se deve à diferença na própria prática de diplomacia entre as partes identificada pelo autor, de modo que o contato com os omíadas orbitava sobretudo certo fluxo e refluxo, como uma espécie de Guerra Fria dos tempos medievais. Conforme o relato, por exemplo, Carlos, o Calvo, neto de Carlos Magno, “procurou manter boas relações com Córdoba, mas convivia com entraves para consolidar a paz com os omíadas”.

The Emperor and the Elephant sem dúvida apresenta uma premissa promissora, ao tratar de fontes até então inéditas ou quase inéditas no mundo ocidental. O livro captura com eficácia a atenção do leitor, sobretudo historiadores e pesquisadores interessados, com um grande apelo representado por uma nova perspectiva. Entretanto, certas porções do livro exibem inconsistência em termos de engajamento, em particular, em ambos os capítulos dedicados aos omíadas.

Quem sabe, a discrepância no engajamento se dá pelo fato de que a diplomacia de fronteira, embora mais duradoura, carece do prestígio cativante da diplomacia com governos remotos que oferecem presentes exóticos e demonstrações extravagantes de hospitalidade. Para ser justo, superar um elefante como presente a um monarca sempre será uma tarefa difícil.

Resenha: Histórias e conflitos diplomáticos da resistência palestina no livro de Daud Abdullah

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