clear

Criando novas perspectivas desde 2019

Mês da Herança Nativa Americana nos EUA: Ecos do colonialismo na Palestina histórica

21 de dezembro de 2023, às 06h24

Ao chegar na costa americana, colonos europeus se encontram com os povos originários, em 1683, pintura por J.L.G. Ferris [Universal History Archive/UIG via Getty Images]

A história é conhecida de todos nós: uma população indígena que vive em sua terra por incontáveis gerações é expulsa à força, assassinada e explorada nas mãos de colonizadores. Os colonos chegam a se vangloriar como “pioneiros” ao edificar “assentamentos” e marginalizar sistematicamente as comunidades nativas, expropriá-las de qualquer autonomia, roubar seus recursos — como água, insumos energéticos e outras riquezas – e destruir não apenas seu extenso tecido cultural, como seu modo de vida.

Mesmo sem especificar nomes e localidades, a descrição cabe ao genocídio cometido contra os povos nativos americanos para estabelecer assim, o mais antigo Estado colonial de assentamento: os Estados Unidos da América. Contudo, é a mesma história para as mais diversas comunidades indígenas ao redor do mundo, incluindo os cidadãos nativos da Palestina histórica — seja na Cisjordânia e Faixa de Gaza, seja no território designado Israel.

Passamos de dois meses da brutal ofensiva militar israelense contra Gaza, com apoio incondicional dos Estados Unidos, deixando 20 mil mortos — em grande maioria, mulheres e crianças. Oito mil pessoas estão desaparecidas sob os escombros e centenas mais são mortas diariamente. Joe Biden e seu governo, no entanto, insistem em propagar desinformação a fim de ofuscar a verdadeira face do genocídio israelense em Gaza e sua inerente cumplicidade. À medida que políticos em Washington buscam justificar o injustificável, testemunhamos o que realmente acontece por meio de incontáveis relatos em primeira pessoa, incluindo imagens e vídeos registrados em campo, que documentam a destruição e a devastação imposta ao povo palestino.

LEIA: Israel já perdeu a batalha na Faixa de Gaza

Enquanto somos consumidos pela catástrofe que se desenrola em Gaza e pelo fato de que o contribuinte americano tragicamente financia o massacre, quase deixamos passar despercebida a ironia de que, em casa, nos Estados Unidos, novembro foi o Mês Nacional de Herança Nativa Americana. Segundo o governo, a ideia é reconhecer a história e a contribuição das comunidades originárias no tecido multicultural da sociedade americana. No fim de outubro, o presidente Biden — enquanto promovia os esforços de guerra e o genocídio em Gaza — reiterou seu compromisso em “apoiar a soberania das tribos, manter a confiança e as responsabilidades do governo e trabalhar em parceria com as nações indígenas para avançar na prosperidade, dignidade e segurança dos povos”.

A hipocrisia de sua declaração é desconcertante, dado que o governo dos Estados Unidos mantém seu apoio a Israel, incondicionalmente, em sua destruição das comunidades originárias da Palestina, enquanto celebra a cultura e as tradições dos nativos americanos. Os paralelos entre o roubo de terras na América — exemplificado pelo apagamento deliberado de seus marcos patrimoniais e esgotamento de seus recursos naturais — e as ações israelenses na Palestina, incluindo a destruição de oliveiras e a expulsão de camponeses de suas terras, demonstram um padrão compartilhado de marginalização, expropriação e exploração ambiental. Nos dizem que Israel tem o direito a suposta “autodefesa”, mas vale questionar que “defesa” é essa contra árvores centenárias, padarias comunitárias ou bebês prematuros em incubadoras.

Como estudantes cujas histórias familiares são impactadas diretamente pelo colonialismo e pela ocupação, reconhecemos que a terra, o povo e o período histórico podem ser diferentes, mas a realidade é comum, os traumas são compartilhados e a luta por libertação e justiça não tem fronteiras.

As transgressões de Israel em Gaza e na Cisjordânia ecoam injustiças históricas impostas pelo Estado colonial de assentamentos dos Estados Unidos sobre os povos nativos americanos. O colonialismo de assentamento, como aponta o pesquisador Patrick Wolfe, opera na “lógica de eliminação”, ao buscar exterminar os coletivos indígenas e sua autonomia política. A conquista imperialista da terra e de seus recursos buscou a limpeza étnica dos povos originários das Américas,  resultando no assassinato de cerca 56 milhões de pessoas ao longo dos séculos. De forma similar, o sionismo — doutrina supremacista e fundacional do Estado de Israel, que reivindica a hegemonia da “nação judaica” na Palestina histórica — foi usada para justificar a Nakba, ou “catástrofe”, com a destruição de 500 aldeias e cidades palestinas e expulsão de mais de 750 mil pessoas de suas terras.

O legado da Nakba persiste — manifesto no roubo continuado de propriedades palestinas, perda irreparável de vidas, negação prolongada dos direitos legítimos de retorno dos refugiados e seus descendentes e, agora, a ofensiva a Gaza. As diretivas militares de Israel e a retórica de desumanização contra os palestinos certamente nos recorda da estratégia adotada por colonos e conquistadores para subjugar os povos nativos nas Américas. Massacres e fome como arma são elementos comuns. Na obstinada execução de crimes de lesa-humanidade, repousa o ataque deliberado e ininterrupto contra instalações e estruturas vitais — incluindo a imposição de um bloqueio total contra o território costeiro —, de modo a desmentir qualquer suposto compromisso em proteger civis.

Meses que celebram o patrimônio e a cultura dos povos diversos que compõem nossas comunidades não bastam, nem de longe, para reconhecer as injustiças e reparar a devastação e o genocídio das civilizações originárias. Muito pelo contrário, feriados como esses são ainda gestos simbólicos de sociedades inclinadas ao colonialismo e ao imperialismo que reforçam as estruturas de poder e buscam absolver o legado dos colonos e seus cúmplices da contínua marginalização das comunidades indígenas. A aparente contradição do presidente Biden se esmaece por seu reconhecimento meramente superficial dos povos nativos, ao mascarar políticas repressivas e a enorme complexidade das macroestruturas nos Estados Unidos e além.

O enfoque de novembro nas “contribuições” dos povos indígenas da América agrega uma nova camada à contradição de Washington, ao sugerir que os valores humanos são contingentes a quem produz e quando produz. Nenhum gesto político é capaz de compensar a comunidade nativa americana por tudo que perdeu com a colonização estrangeira. Devolver as terras e promover reparações e indenizações são fundamentais — contudo, não bastam. É preciso garantir que atrocidades não voltem a ocorrer, não importa a quem. Entretanto, o governo americano e seus líderes mais uma vez colaboram com o apagamento de populações nativas; desta vez, em Gaza e no restante da Palestina ocupada.

Para honrar verdadeiramente os povos nativos das Américas, nós, cidadãos americanos, temos de nos engajar com suas comunidades para compreender a devastação do colonialismo de assentamento que lhes foi imposta para jamais permitir a reincidência.

Nossos líderes eleitos devem ser responsabilizados e denunciados por sua hipocrisia em celebrar o Mês de Herança Nativa Americana enquanto promovem, com a mesma desfaçatez, o genocídio do povo originário da Palestina histórica.

Afinal, as táticas adotadas pela agressão israelense contra os palestinos de Gaza e da Cisjordânia são as mesmas que edificaram a pedra angular dos Estados Unidos da América. Devemos reconhecer tais fatos e soar o alarme quando padrões de desumanização e genocídio se repetem, particularmente quando somos financeira e politicamente cúmplices — mesmo que aconteçam distantes dos estudos de caso de nossa vã academia.

Devemos intervir antes que seja tarde demais. Devemos apoiar e reivindicar um cessar-fogo permanente. Nunca mais é nunca mais para todos. Devemos honrar o Mês de Herança Nativa Americana ao dar fim a mais essa opressão colonial e seus assentamentos.

LEIA: A guerra de Israel não se trata de sobrevivência. Trata-se de preservar o apartheid sionista

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.