Quando toda essa dor vai acabar? Esta é talvez a frase mais dura nas entrelinhas do romance “A Mulher de Tantoura” da escritora egípcia Radwa Ashour, frase que é repetida diariamente por mais de 14 milhões de palestinos em todas as partes do mundo, e é a dor do pesadelo que está preso ao peito do povo palestino há mais de um século. Desde o fim da primeira guerra mundial, a Palestina e a região foram submetidas à colonização ocidental, passando por sucessivas histórias, começando pela imigração ilegal de judeus para implementar o projeto colonial e cultivar uma entidade sionista alheia à região para servir aos interesses imperiais. Depois, a ocorrência da Nakba Palestina em 1948 e o deslocamento de quase um milhão de palestinos de suas casas, a demolição de mais de 500 cidades e vilas, terminando com a ocupação de toda a Palestina e a imposição de políticas injustas destinadas a limitar as vidas dos palestinos e o deslocamento dos que permanecem. Portanto, esta pergunta é a primeira coisa que vem à mente de qualquer palestino quando abre os olhos para receber um novo dia.
O romance leva o nome da vila de Tantoura localizada na costa palestina ao sul de Haifa, vila esta que foi submetida a um terrível massacre por gangues sionistas como outras cidades e vilas palestinas, e o romance trata desse massacre como ponto de partida e um dos principais fatos para acompanhar a vida de uma família desenraizada da aldeia que começou uma vida difícil até chegar ao Líbano e experimentar a vida de asilo.
Este romance representa uma obra importante e uma rara audácia. Quem o ler – até agora em árabe ou inglês – entenderá o que significa a Nakba e o deslocamento forçado e o que significa para uma pessoa perder sua pátria e se tornar refugiada. Este romance é um dos tipos raros e diferentes sobre a Palestina e sua história, sobre suas aldeias e cidades, sobre os tormentos de seu povo e sua firmeza, sobre suas canções, herança e árvores, e sobre a história de suas pessoas em detalhes precisos.
A obra é baseada na narrativa de personagens fictícios, lançando luz sobre uma família da aldeia de Tantoura, que foi arrancada de suas terras após a Nakba, para se mudar para a vida de exílio na diáspora. Conta a história e cotidiano de Ruqayyah, desde que era uma menina de treze anos, garotinha sonhadora que morava perto do mar e inalava seu perfume de manhã e à noite, no cotidiano simples da aldeia e relembra as transformações ocorridas naquele período em sua casa, em sua aldeia e na Palestina toda.
RESENHA: Ghassan Kanafani – Anticolonialismo e alternativa socialista na Palestina
Gangues sionistas começaram a destruir as vilas e cidades ao redor de sua aldeia e a deslocar seu povo, até chegar onde ela vivia. Ruqayyah lembra como eles levaram as crianças com suas mães como um rebanho de ovelhas, e onde os homens da aldeia foram levados, e quando os colocaram em caminhões para deportá-los para outro lugar. Ela, de repente grita e se dirige a sua mãe, apontando para uma pilha de cadáveres. Ao olhar para a direita, ela viu o corpo de sua prima, e quando olhou para a esquerda, viu o cadáver de seu pai e seus dois irmãos. EComeça aí sua jornada de deslocamento, primeiro para perto de Fureidis, depois para Hebron, depois para a Síria, e no fim para a cidade de Sidon, no Líbano. Sua mãe, que viu os cadáveres de seu marido e filhos, não conseguiu aceitar o fato e passou o resto de sua vida contando às pessoas que seu marido fora preso e seus dois filhos haviam fugido para o Egito.
Anos após a chegada ao Líbano, Ruqayya se casou com o primo Amin, que trabalhava como médico, e com quem viveu até que ele foi martirizado no massacre de Sabra e Shatila. Ele a ajudara a superar a dor e foi pai de seus três filhos além de Miriam, uma criança que Amin achou órfã e decidiu adotar. Como outras mulheres palestinas da época, Ruqayya trabalhou duro para criar os filhos, educá-los e assumir a responsabilidade pelo lar e pela família. Os filhos cresceram e se formaram nas universidades, sendo que o mais velho, Sadiq, foi morar em Abu Dhabi e se tornou um empresário de sucesso, Hassan tornou-se escritor e professor vivendo no exílio, mais especificamente no Canadá, e o terceiro, Abdul Rahman, que começou a estudar engenharia e um ano antes de se formar passou a estudar direito para defender seu povo e sua causa, também participou da defesa de Beirute na invasão de 1982 e se recusou a deixá-la com os que partiram para a Tunísia. Raptado várias vezes, ele optou por emigrar para França, tornou-se advogado e dedicando-se à coleta de testemunhos fieis das famílias de Sabra e Shatila e outras que foram submetidas a massacres para abrir processos contra a entidade sionista e seus líderes junto ao judiciário belga,. Miriam cresceu e se mudou para estudar medicina no Egito e depois na França.
O romance também trata da presença palestina no Líbano, e de um aspecto ainda maior que foi a decepção dos palestinos, principalmente daqueles que viviam em campos de refugiados, e seu sentimento de traição à sua causa pelos países árabes. Também se sentiram traídos pelas lideranças da Organização de Libertação da Palestina, que não diferia de nenhum regime árabe. A autora trata do papel desempenhado por esta liderança na perda do sonho de libertação e de retorno, sua renúncia aos direitos do povo palestino, e também fala da luta entre as facções palestinas movidas por interesses partidários estreitos, longe do interesse nacional. Aborda ainda a má administração da batalha no Líbano que terminou com a rendição e partida para a Tunísia, e aqui a pergunta era: o que os palestinos farão na Tunísia? Foi uma questão de anos até que os palestinos ficassem chocados e soubessem a resposta para essa pergunta.
A autora usa uma linguagem simples, forte de uma forma nada complicada para chegar a sua ideia, fazendo com que o leitor se sinta atraído pela personagem de Ruqayya, queira abraçá-la e compartilhar com a ela a comida da aldeia e passear com ela em sua praia particular e nos campos de sua aldeia para colher figos, uvas e amêndoas. A personagem de Ruqayya faz o leitor viver com ela a história de seu primeiro amor por um jovem que apareceu de repente para ela entre as ondas douradas do mar. Eles conversaram um pouco e depois ele voltou com a família para pedir sua mão em casamento. Como resultado da Nakba e do deslocamento, ela o perdeu e a tudo que tinha ao se tornar uma refugiada na diáspora. Depois casou-se e deu à luz e viveu em sete cidades transitando entre as casas dos filhos. Septuagenária, ele relutou ante a insistência do filho Hassan, que lhe pedia que escrevesse sua história, como um documento para as gerações futuras, Ela queria fugir da dor da memória e dizia não ser boa em escrever. Ele insistiu para que escrevesse qualquer coisa: “Só você tem que começar”. Anos depois, apesar da memória dolorosa, Ruqayya atendeu ao pedido do filho e escreveu uma biografia de três gerações: pais, filhos e netos.
RESENHA: Poder nascido dos sonhos: Minha história é a Palestina
O romance termina com a chave da casa em Tantoura, que Ruqayya costumava pendurar no pescoço e nunca tirar, mesmo quando tomava banho e quando dormia, chave que herdou de sua mãe, que morreu pouco depois de chegar ao ao Líbano, e também nunca a tirou do pescoço. É algo que faziam todas as mulheres palestinas do campo de refugiados.
As chaves de nossas casas são o pesado legado que os pais deixaram aos filhos nos campos, e é o desejo dos avós e dos pais para os netos de que, por mais que demore, voltem à, terra natal, para suas cidades e lares.
Quando a ONU organizou uma reunião na fronteira entre a Palestina ocupada e o Líbano para encontro de parentes de ambos os lados após uma longa ausência, Ruqayya foi sentir o cheiro do ar da Palestina, onde talvez ela encontrasse alguém de sua aldeia Tantoura e descobrir o que aconteceu depois
Naquele ano, ela foi surpreendida pelo filho Hassan do outro lado da fronteira. Ele estava visitando os territórios ocupados com sua esposa e filhos, usando sua cidadania canadense e pôde visitar a Palestina. Quando tentaram se abraçar pelo arame farpado, sua mãe lhe perguntou: Já visitou Tantoura? Sim, ele respondeu, e eu verifiquei tudo o que você me contou, ele acrescentou, a vila foi completamente destruída e seu lugar se tornou um estacionamento. Então Hassan apresentou sua filhinha recém-nascida Ruqayya para sua mãe, e quando ela quis abraçá-la, ela pediu a um jovem alto que a passasse por cima do arame farpado, A avó abraçou a neta e chorou, quando pensou em lhe dar um presente, tirou a chave do pescoço e pendurou no pescocinho de Ruqayya, dizendo: Este é o chave de sua casa em Tantoura Ruqayya, depois disso ela a entregou novamente ao jovem alto para ser entregue a seu pai por cima do arame farpado.