Quase tantos jornalistas mortos
quanto em toda a Guerra do Vietnã.
A violência da guerra está ocorrendo em Gaza desde o início de outubro. Mais de sessenta jornalistas estão agora entre os 15.000 mortos (até 7 de dezembro) desse conflito de terra arrasada.
“Acabo de voltar de uma visita à Palestina e nunca imaginei que pudesse ser uma experiência tão difícil”, diz o jornalista francês Anthony Bellanger, que nos últimos oito anos tem sido secretário-geral da Federação Internacional de J
Ele visitou Ramallah, na Cisjordânia, na última semana de novembro e manifestou sua disposição de organizar uma próxima missão a Gaza assim que as condições permitirem. O resultado de sua entrevista é este olhar testemunhal sobre um conflito no qual o direito de informar já é mais uma vítima e o jornalismo, ali, é uma profissão de alto risco.
Entre 21 e 24 de novembro, você esteve em Ramallah, na Cisjordânia, Palestina. Quais são suas impressões?
Embora eu tenha visitado essa região com frequência há anos, essa última missão organizada pela Federação Internacional de Jornalistas com nossa afiliada, o Sindicato de Jornalistas Palestinos, foi uma experiência muito poderosa.
O objetivo da missão era expressar solidariedade ativa com nossos colegas em nome de todos os membros da FIJ. Conversei com parentes de jornalistas assassinados; conheci um colega amputado; ouvi testemunhos de partir o coração; recebi informações sobre a destruição de escritórios de mídia nacionais e internacionais; conheci jornalistas feridos e outros que haviam sido detidos em prisões israelenses. Todos exemplos de uma situação deplorável na prática do jornalismo.
Também visitamos veículos de mídia em Ramallah, inclusive a Palestine Broadcasting Corporation (PBC), a Al Jazeera, a Al Arabia TV, a Nisaa FM, a Ajyal Radio Network e os escritórios editoriais do jornal Al-Ayyam. Todos esses intercâmbios mostraram como é atroz a vida cotidiana dos jornalistas palestinos, tanto na Cisjordânia quanto em Gaza. Quando não estão sendo perseguidos, ameaçados ou feridos pelo exército israelense, eles são impedidos de cobrir os eventos porque o sinal da Internet é cortado.
LEIA: Jornalistas da Al Jazeera são feridos por Israel em Khan Yunis, no sul de Gaza
Durante a viagem, solicitei ao escritório de imprensa do governo israelense uma reunião com eles, mas ninguém respondeu. Eu já havia tentado entrar em contato com as autoridades israelenses antes, mas sem sucesso. Devo lembrar que, em outubro do ano passado, a FIJ emitiu um comunicado assinado por 70 de seus membros, no qual pedimos ao governo que cumprisse integralmente a lei humanitária internacional e a lei internacional de direitos humanos. Pedimos que ele agisse para impedir a prática de qualquer crime de acordo com o direito internacional, inclusive crimes de guerra e crimes contra a humanidade e genocídio, bem como a incitação a esses crimes.
Desde 7 de outubro, data do ataque mortal do Hamas seguido da resposta sangrenta do exército israelense na Faixa de Gaza, nunca antes na história recente a profissão sofreu um massacre tão grande em um período tão curto de tempo. Até 5 de dezembro, mais de 60 jornalistas haviam sido mortos, a maioria palestinos, mas também israelenses e libaneses. É um verdadeiro pesadelo. Fico com um sentimento muito amargo: estive lá por três dias, mas esses homens e mulheres jornalistas continuam a viver e a trabalhar nessa brutal realidade diária de guerra e morte.
Esse sentimento também significa uma relativa impotência?
Acima de tudo, não posso deixar de sentir uma emoção muito forte. Os profissionais de mídia que ainda estão trabalhando na Palestina, especialmente em Gaza, têm suas reuniões editoriais matinais, mas não sabem o que vai acontecer em apenas alguns minutos ou algumas horas. Eles não têm certeza se estarão vivos ou se vão se juntar à já enorme lista de pessoas que pereceram depois de 7 de outubro. Muitos deles foram vítimas de bombardeios maciços. Outros foram alvos de ataques militares direcionados pelas forças armadas israelenses. Fico comovido ao pensar que o destino dessas pessoas foi o resultado de sua decisão de denunciar, ou seja, de exercer um dos direitos humanos essenciais. Aqueles que continuam a trabalhar na Faixa de Gaza também continuam a enfrentar riscos enormes para garantir informações que hoje estão ameaçadas, mas que continuam sendo essenciais. Eles sempre mantêm essa vontade de exercer sua profissão.
E isso também me desafia, e repito mil vezes, que esses colegas também são civis, não militares; são profissionais e seres humanos como nós.
Em 1º de dezembro, após uma semana de cessar-fogo que trouxe alívio parcial à população palestina, Israel retomou o bombardeio de Gaza, com o corolário de centenas de novas vítimas. Sua avaliação?
Observo que ainda é uma situação inimaginável, sem paralelo em outros conflitos, especialmente por causa do impacto direto sobre a população civil e, em particular, sobre as crianças, porque ninguém pode entrar ou sair de Gaza. É uma prisão a céu aberto que está se transformando em uma grande vala comum. Quanto à imprensa, desde o início de outubro, contamos em média uma morte por dia. Estamos nos aproximando do número de jornalistas mortos durante toda a Guerra do Vietnã. Outros confrontos brutais no Oriente Médio não chegaram perto da intensidade do atual em termos de impacto sobre a imprensa.
LEIA: Histórias diretas de jornalistas palestinos são essenciais. Essa é a guerra deles para contar’
No entanto, continuamos convencidos a continuar trabalhando pela paz e a apoiar nossos membros, fortalecendo nossos esforços com organizações internacionais. Durante minha visita, juntamente com uma delegação do sindicato palestino, nos reunimos em Ramallah com o chefe do escritório da UNESCO, a agência da ONU responsável pela proteção e segurança dos jornalistas. Eles garantiram a entrega futura de kits de primeiros socorros, baterias de celular, coletes à prova de balas e capacetes. A futura instalação de uma “casa segura” em Khan Younis, no sul de Gaza, para permitir que os jornalistas trabalhem em um ambiente protegido, está sendo considerada.
Em mais de uma ocasião nos últimos dias, a FIJ lembrou a todas as partes envolvidas nesse conflito a importância de a imprensa e os jornalistas respeitarem os princípios e valores éticos da profissão.
Isso mesmo. Esse é um desafio constante para todos os profissionais da imprensa, especialmente em uma situação tão complexa como a da Palestina. A FIJ tem uma Carta Mundial de Ética para Jornalistas. Se conseguirmos que todos a cumpram, evitaremos o que está acontecendo agora em muitos casos: que as informações sejam distorcidas e se tornem pura propaganda. Sabemos que uma das premissas de qualquer guerra é controlar as informações em favor de seu próprio campo. É por isso que, como FIJ, insistimos na responsabilidade de todos de permitir e garantir informações verdadeiras do local (https://www.FIJ.org/es/quien/reglas-y-politica/carta-mundial-de-etica-para-periodistas).
Apesar dessa situação dramática na Palestina, um número significativo de governos não está levantando a voz o suficiente para impedir esse desastre humano e humanitário. Qual é a sua percepção de como os próprios palestinos se sentem em relação à dinâmica internacional?
Na Palestina, eles não entendem o que está acontecendo em nível internacional, principalmente com a posição da União Europeia, dos Estados Unidos e do Canadá, que eles chamam de “Ocidente”. Os palestinos têm a impressão de que estão abandonados à própria sorte. O governo israelense e seus aliados de extrema direita estão exterminando um povo, destruindo um território e violando a lei humanitária internacional, e ninguém consegue detê-los. Os palestinos sentem que grande parte da comunidade internacional tem medo de Israel, o que torna mais fácil para o governo israelense fazer o que quer.
Um sinal positivo, embora esperemos que tenha efeitos concretos: Karim Khan, promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI), reuniu-se em 2 de dezembro em Ramallah com Nasser Abu Baker, presidente do Sindicato dos Jornalistas Palestinos. Abu Baker, que também é vice-presidente da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), informou Khan sobre a situação dos jornalistas e trabalhadores da mídia em Gaza e na Cisjordânia, e lembrou-o das duas queixas ao TPI apresentadas pela FIJ e seu sindicato em abril e setembro de 2022. O compromisso de Karim Khan com os casos palestinos é vital. Durante meses, parecia que o TPI tinha tempo para outros conflitos, mas não para este. Espero que essa reunião acelere o processo de investigação das alegações que antecedem a crise atual, bem como os terríveis eventos que ocorreram em Gaza desde o início de outubro.
Uma reflexão final?
Repetir mais uma vez que é dever da Federação Internacional de Jornalistas apoiar seus membros, neste caso, os jornalistas palestinos, seja na Cisjordânia ou em Gaza. Pedimos um cessar-fogo definitivo. Esse massacre deve parar imediatamente e reiteramos ao governo israelense que ele deve respeitar o direito internacional e proteger os civis, inclusive jornalistas. A solidariedade está no centro de nossas ações e continuaremos a trabalhar com as Nações Unidas e seus afiliados para garantir um futuro digno para a imprensa e o direito de informar.
LEIA: Israel mata 75 jornalistas em Gaza no período de dois meses