A narrativa como arma na guerra israelense a Gaza

Na semana passada, uma cidadã franco-israelense que estava dentre os colonos israelenses capturados pelo movimento Hamas em 7 de outubro mudou seu relato sobre seu período na Faixa de Gaza, ao alegar que um militante palestino a “estuprou com os olhos”, enquanto a mantinha em uma “sala escura, sem poder falar, ver ou ouvir”.

Mia Schem, de 21 anos, foi libertada em novembro, sob uma pausa humanitária que entrou em colapso após Israel rejeitar os termos do Hamas. Suas alegações tomaram as manchetes, apenas algumas semanas depois de ela afirmar que fora bem tratada em sua custódia. Não obstante, em entrevista ao Canal 13 da televisão israelense, Schem justificou sua reviravolta narrativa ao insistir que se sentiu coagida por receios de ser “estuprada” por um combatente armado que a vigiava. Ao coadunar as justificativas para os bombardeios indiscriminados de Israel contra a população civil de Gaza, Schem chegou a alegar que fora mantida na mesma residência onde moravam a esposa e os filhos de seu carcereiro.

No complexo reino das crises com reféns, é comum às narrativas ir e voltar segundo a maré, revelando camadas distintas de emoções, traumas e  manipulação. Os eventos recentes em torno do testemunho da ex-prisioneira de guerra incitou debates acalorados, em particular sobre as delicadas dinâmicas de situações com reféns e a complexidade de seus relatos após serem libertados.

A saga começou com a soltura da cidadã israelense, que logo de início expressou um relato um tanto surpreendente sobre seu cativeiro em Gaza, ao reafirmar mais de uma vez que foi bem tratada por seus carcereiros. Suas declarações contrapunham de maneira veemente os esforços de desumanização e criminalização da resistência palestina, incluindo estereótipos racistas, criando ondas de choque entre o público israelense e em seu ponto de vista sobre os combatentes envolvidos na chamada Operação Tempestade de Al-Aqsa.

Testemunhos contraditórios

De modo característico, a mudança nos relatos de ex-reféns costumam levar à luz táticas um tanto insidiosas comumente empregadas em tempos de guerra, sob as quais ex-prisioneiros são coagidos ou manipulados a corroborar uma certa versão dos fatos — seja a serviço dos interesses de seus captores ou das forças de retaliação. No entanto, neste caso específico, a mudança drástica no testemunho da cidadã israelense atordoou o público. Em meio a uma pressão crescente de seu próprio governo, liderado por Benjamin Netanyahu, e seus aliados internacionais, Schem mudou o relato, ao desumanizar seus captores. A cidadã israelense, a partir de então, passou a reivindicar um vago tormento imposto por seu carcereiro, com um destaque em particular à alegação de que a “estuprou com os olhos”.

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A súbita metamorfose de seu relato, de um retrato inicialmente moderado a uma caricatura grotesca, alimentou uma onda já prevalente de ceticismo. Foi essa uma alteração genuína de sua recordação dos eventos ou elementos externos a pressionaram a abraçar uma narrativa sensacionalista?

Se a transformação abrupta de seu testemunho pode nos dizer algo, é talvez sobre as táticas e o poderio do governo israelense e suas agências de modelar narrativas pós-cativeiro.

A narrativa fluida sobre sua custódia não somente serve como uma lembrança marcante das complexidades em torno dos prisioneiros palestinos e israelenses como também do impacto abrangente de táticas de propaganda em tempos de guerra. O fato parece trazer à tona uma dificuldade enfrentada por Israel para tecer uma narrativa favorável a suas ações, à medida que prisioneiros libertos passaram a descrever seus captores como pessoas responsáveis e humanas.

Além disso, o caso alimenta dúvidas sobre a autenticidade e confiabilidade dos testemunhos israelenses moldados sob influência alheia. É razoável pressupor que as lembranças de um indivíduo flutuem tão drasticamente, em meio ao enredamento do trauma, ou devemos ver este episódio como um exemplo claro de coação pelas autoridades de Israel, imposta a seus próprios cidadãos uma vez libertados?

Em último caso, a mudança no testemunho da ex-refém demanda uma compreensão crítica das intersecções entre vivência pessoal, influência externa e agenda política, que compõem juntas a evolução da narrativa israelense em meio à guerra.

Em uma paisagem particularmente volátil, Israel não deixou pedra sobre pedra com intuito de aperfeiçoar a arte da propaganda de guerra, ao manipular versões como arma midiática de seu arsenal. Israel usa claramente estratégias de relações públicas e desinformação para construir a seu proveito as percepções da opinião pública, a fim de consolidar e normalizar sua posição na região do Oriente Médio e Norte da África.

Táticas de manipulação

Desde os primórdios da ocupação da Palestina histórica, Israel optou por um uso sistemático e deliberado de discursos políticos e militares como arma colonial. A tática costuma envolver distorções dos fatos, desumanização dos palestinos nativos, criminalização e demonização da resistência, disseminação de informações falsas e propagação de mentiras formuladas a serviço de sua agenda. Ao alegar que militantes do Hamas cometeram estupros e degolaram bebês — ambas acusações desmentidas por jornalistas em campo e por ongs internacionais —, Israel mais uma vez demonstrou se engajar em uma guerra que vai além dos campos de batalha, para tomar como arena corações e mentes.

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Desde vídeos que registram as supostas atrocidades dos combatentes palestinos — jamais verificados — a narrativas que repetem acusações de estupro e terrorismo, a até mesmo a mudança nos testemunhos dos prisioneiros libertos, o conflito se tomou por desinformação, a fim de manipular a opinião pública, reunir apoio internacional ao genocídio e disseminar uma propaganda particularmente colonialista contra grupos de resistência.

Israel também apelou à censura e restrições de acesso a jornalistas, como mais outra tática de seus esforços para controlar a narrativa. Ao manter um olho atento sobre as aparições de ex-reféns na imprensa, ao instruí-los sobre o que dizer e o que não dizer e incumbir oficiais militares de emitir perícias médicas sobre os ex-prisioneiros, o Estado israelenses expôs, no entanto, uma profunda paranoia. Tamanho controle significa que o governo mantém mão de ferro sobre a verdade que pode vir à tona — uma versão dos fatos que desafia sua retórica de desumanização não apenas de grupos inimigos como de toda a população nativa.

Ao restringir os testemunhos dos reféns, tornou-se evidente que o governo israelense busca encobrir seus próprios crimes contra os prisioneiros palestinos, que deixaram suas celas com marcas notáveis de maus-tratos, humilhação e tortura. Além disso, os esforços da ocupação parecem insistir em uma velha distorção da imagem dos grupos de resistência — até mesmo ao acusá-los de seus próprios crimes.

A vanguarda da desinformação israelense e o uso generalizado de manipulação dos fatos, no entanto, deixou um efeito contrário, ao erodir sua imagem como bastião da autodefesa, à medida que o público compreendeu que as verdadeiras vítimas são os palestinos. Ao insistir em perpetuar inverdades e manipular narrativas cada vez mais delirantes, o exército colonial israelense, mais uma vez, negligenciou promessas de transparência e integridade.

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A proliferação de versões conflitantes alimentou nada mais que as sementes da dúvida, ao ferir não apenas a confiança da comunidade internacional mas também do público interno, sobre instituições que deveriam defendê-los.

Neste entremeio, a resistência palestina aproveita o caos das versões israelenses para reunir apoio e solidariedade, ao tecer uma narrativa única de resiliência, transparência e clareza em seus objetivos, à medida que a reputação das alegações de “autodefesa” de Israel estão na lona.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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