Desde que o atual gabinete israelense do premiê Benjamin Netanyahu chegou ao poder, em dezembro de 2022, emergiu um consenso, mesmo no establishment ocidental e na oposição política no país, que se trata de um governo racista e supremacista judaico.
Caracterizações do governo, que claramente expressa a predileção da maioria do eleitorado judaico israelense, como “mais extremo”, “mais fundamentalista” e “mais racista” na história de Israel se tornaram comuns. Outros analistas chegam a apontar que se trata do “primeiro governo fascista” do Estado de Israel.
Isso ignora o fato de que, dois anos antes do atual governo ascender ao poder, organizações historicamente proeminentes de direitos humanos ocidentais, muitas vezes inclinadas a um viés pró-Israel, corroboraram que o país, desde sua fundação, em maio de 1948, aplica sobre a população um regime de apartheid. Palestinos e seus apoiadores, no entanto, denunciam o apartheid ao menos desde a década de 1960.
Trata-se do mesmo governo, objeto de condenação internacional, que lançou sua guerra de extermínio em curso contra o povo palestino, cujo total de mortos, feridos e desaparecidos supera cem mil, além de dois milhões de deslocados.
Ainda assim, é o mesmo governo abertamente racista cujo genocídio recebe apoio, incluindo armas e dólares, dos Estados Unidos e de governos da Europa, que parecem se esquecer de suas críticas ainda recentes e sequer hesitaram em justificar os crimes israelenses — como fizeram antes ao defender o colonato supremacista judaico das acusações de apartheid.
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Cada vez mais, porém, a questão em debate não é se o governo israelense é racista, fascista ou genocida em caráter, mas sim se a maioria da população colonial judaica se encaixa nessa definição e, portanto, se seu governo de fato nada mais é que uma manifestação da cultura política do país.
‘Não mais à margem’
David Hearst, editor-chefe do Middle East Eye (MEE), observou recentemente que aqueles que expressam intento genocida entre os judeus israelenses — incluindo soldados, artistas, músicos e políticos — “já não estão mais na margem [da sociedade], mas sim representam a corrente”. Segundo sua análise, os israelenses “se tornaram racistas, fascistas e genocidas ao falar dos palestinos — e sem pudor de sê-lo. Eles têm orgulho disso, fazem piada do racismo e sequer se esforçam para disfarçá-lo”.
De acordo com o Instituto Democracia em Israel e o chamado Índice de Paz da Universidade de Tel Aviv, pesquisas realizadas mais de um mês após o início do bombardeio contra a Faixa de Gaza mostram que 57.5% dos judeus israelenses alegam crer que “as Forças de Defesa de Israel (FDI) usam muito pouco poder de fogo em Gaza”, outros 36.6% afirmam se tratar do “volume adequado” de bombas e apenas 1.8% alertam para eventuais abusos.
Ao comentar sobre opiniões de cunho genocida entre a maioria dos judeus israelenses e seu apoio aos esforços de limpeza étnica do povo palestino, o jornalista israelense Gideon Levy parece perplexo: “Ou essa é a verdadeira face de Israel e o ataque de 7 de outubro a trouxe legitimidade para vir à superfície ou o dia 7 realmente mudou tudo”. Então acrescentou: “Eu realmente não sei qual das duas é verdade”.
A reação de Levy, no entanto, é que é surpreendente, dado o racismo deveras documentado do movimento sionista desde seus primórdios e o fato notório de que este buscou, de forma deliberada, conduzir um processo de limpeza étnica da população nativa da Palestina.
A imprensa israelense costuma publicar artigos aparentemente “razoáveis” que retratam os planos de limpeza étnica e da potencial expulsão dos palestinos de Gaza ao deserto do Sinai, no Egito, como um sonho, ao descrever a região árida e estrangeira como “um dos lugares mais adequados na Terra para dar ao povo de Gaza esperanças de um futuro pacífico”.
Não obstante, alguém poderia responder com a mesma “razoabilidade” ao sugerir que os colonos ilegais israelenses retornem a Estados Unidos e Europa, sobretudo Alemanha, onde têm seus direitos e privilégios salvaguardados. Com efeito, seriam esses “alguns dos lugares mais adequados na Terra para dar aos israelenses esperanças de um futuro pacífico”.
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Isso é particularmente verdade à medida que muitos políticos e intelectuais israelenses se queixam com regularidade de que vivem em um bairro “difícil”, ao chegar a caracterizar suas próprias cidades — em alusão a seus vizinhos palestinos — como uma “verdadeira selva”. A Europa e os Estados Unidos, por outro lado, seriam um exemplo de primeiro mundo, com apreensões de segurança consideravelmente menores. Afinal, como declarou com infâmia o chefe de diplomacia da União Europeia no último ano, a Europa é um “jardim”, enquanto “a maior parte do restante do mundo é uma selva”.
A política alemã e presidente do bloco, Ursula von der Leyen, também insistiu que a “cultura judaica é a cultura europeia” e que a “Europa tem que valorizar sua identidade judaica, para que a vida dos judeus no continente possa voltar a florescer”.
Tamanho movimento voluntário por parte dos judeus israelenses, cuja escala de um milhão ou mais já detém passaportes estrangeiros, pouparia o povo palestino — e o Oriente Médio como um todo — da violência e das guerras deflagradas pela colonização sionista desde a década de 1880 e sobretudo após a Nakba de 1948.
Quem sabe, em vez dos patronos ocidentais de Israel negociarem por baixo dos panos com Congo ou Canadá para expulsar os palestinos de suas terras ancestrais, como documentado na imprensa, Nações Unidas e Estados árabes deveriam sugerir, quiçá com entusiasmo, que os países ocidentais acolham os judeus israelenses que queiram uma vida mais pacata em lugares onde já possuem direitos, privilégios e cidadania.
Seita violenta
Com pesquisas recentes mostrando a escala do ódio e das reivindicações sionistas na vasta maioria dos cidadãos judeus radicalizados de Israel, diante de seus vizinhos palestinos, seu reassentamento na Europa e nos Estados Unidos, diriam alguns, traria mais paz de espírito a todas as partes envolvidas.
Além disso, aqueles que justificam o extermínio do povo palestino para “salvar” a civilização e os valores ocidentais, com os quais Israel se identifica, se veriam em uma posição muito melhor para fazê-lo no próprio coração do mundo ocidental, em vez da remota fronteira do Império, sob a ameaça da resistência anticolonial palestina.
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Neste mesmo viés, Katharina von Schnurbein, também alemã e coordenadora da Comissão Europeia para Combate ao Antissemitismo, afirmou recentemente que seu continente não “seria o que é sem seu patrimônio judaico”. Segundo von Schnurbein, ao ecoar conceitos de aparente eugenia, o patrimônio judaico está no “DNA da Europa”, de modo que instituições do bloco “desejam protegê-lo, salvaguardá-lo e prezá-lo”.
Poderia se esperar que, como resultado direto de tamanhas promessas, as portas da Europa estivessem abertas aos judeus, diferente do que ocorreu nas décadas de 1930 e 1940, e que os Estados Unidos, que rejeitaram os refugiados do nazismo e devolveram um barco repleto de deslocados judeus em 1939, para que perecessem nos campos de extermínio do nazismo, acolhessem os judeus israelenses em seus “jardins” de segurança e prosperidade de braços abertos.
Um grande número de psiquiatras israelenses já deixou o país para se assentar em pastos mais verdes, como, por exemplo, no Reino Unido, ao mencionar a enorme carga de trabalho que os assolou desde 7 de outubro, levando o sistema de saúde mental à beira do colapso.
Não surpreende, pois a propaganda a incontáveis massacres do povo palestino desde 1948 se converteu cada vez mais em uma seita genocida com raízes profundas em todos os nichos da sociedade e do governo israelense. E como seguidores de uma seita de ódio e violência, a única maneira de salvá-los parece ser desprogramá-los. Seria evidentemente um processo extenso e complexo que, no caso de muitos colonos, tomaria décadas para desfazer esforços institucionalizados de lavagem cerebral.
Quem sabe, os mesmos psiquiatras que deixaram o país poderiam ajudar seus concidadãos em um novo ambiente de segurança na Europa, ao expurgá-los, via delicado tratamento, de seu apego à limpeza étnica e a uma guerra sem fim.
Um futuro de paz
Enquanto isso, a denúncia de genocídio perpetrado por Israel em Gaza levada pela África do Sul ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) acende alarmes na Casa Branca e nas capitais da Europa. Trata-se apenas do último processo sobre crimes israelenses recebido por Haia.
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Cerca de um ano atrás, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma solicitação por opinião consultiva de Haia sobre a ocupação israelense dos territórios palestinos — com 87 votos favoráveis e 26 contra, em maioria os mesmos apoiadores ao genocídio hoje em curso na Faixa de Gaza.
O TIJ deve emitir sua decisão sobre a ocupação no próximo mês. Há expectativa ainda sobre o resultado do processo sul-africano, apresentado em 11 de janeiro.
Haia costuma receber pedidos similares referentes a atos de colonialismo de assentamento desde a Segunda Guerra Mundial. Em julho de 1966, o TIJ rejeitou um apelo emitido quatro anos antes por Libéria e Etiópia sobre os esforços de colonização dos brancos sul-africanos na Namíbia, ao alegar que nenhum dos países tinha jurisdição legal sobre o requerimento. Ambos os países, no entanto, foram membros da Liga das Nações, que precedeu as Nações Unidas, responsável por selecionar o regime de apartheid da África do Sul como potência mandatória na Namíbia após a Primeira Guerra Mundial.
A petição de 1962 pedia a Haia que julgasse sobre o status legal da Namíbia. O presidente da corte, sir Percy Spender, ele próprio nativo de um colonato na Austrália, emitiu seu voto de Minerva em favor do apartheid sul-africano. A decisão deflagrou a árdua luta armada entre a Organização Popular do Sudoeste da África (Swapo) contra os ocupantes brancos. Naquele ano, a Assembleia Geral revogou o mandato sul-africano, porém sem aval.
Em 1969, o Conselho de Segurança enfim declarou apoio à resolução de 1966, para revogar o mandato colonial na Namíbia. Apenas em julho de 1970, quando a África do Sul contestou a ONU e recusou-se em deixar o país, foi que a questão retornou à corte de Haia para uma nova opinião consultiva. No ano seguinte, a determinação do TIJ levou ao reconhecimento das forças anticoloniais Swapo e o direito do povo da Namíbia à autodeterminação.
Diferente de 1966, a opinião de Haia deferida em 21 de julho de 1971 reforçou a posição da Organização das Nações Unidas, ao dispô-la como autoridade governante legal na Namíbia e compelir a retirada militar dos forças do apartheid sul-africano. Em contraposição à decisão pró-colonial de cinco anos antes, o novo veredito revogou o último vestígio de legitimidade que o regime supremacista branco na África do Sul ainda detinha. É certo, no entanto, que o governo do apartheid não acatou a decisão e que os apoiadores ocidentais do país na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) protelaram deliberadamente quaisquer avanços, sob o verniz de um vagoroso “processo de paz”, mesmo ao vetar resoluções e sanções ao Estado racista.
Todavia, a decisão de 1971 levou ao reconhecimento global da legitimidade da resistência armada em busca de autodeterminação nacional, para que o Swapo conduzisse sua luta por libertação para conquistar a independência da Namíbia em 1990.
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Considerando os fatos históricos, caso Haia emitisse uma decisão favorável ao requerimento por medidas cautelares da África do Sul pós-apartheid, ao condenar portanto o genocídio de Israel contra o povo palestino, poderia se tratar de um bom presságio à luta do povo nativo por sua libertação frente a colonizadores sanguinários.
Muito provavelmente, não trará descolonização a curto prazo, mas pode acelerar o processo até que o regime supremacista de apartheid perpetrado por Israel na Palestina histórica seja desmantelado, salvando tanto palestinos quanto israelenses, judeus, cristãos e muçulmanos, da seita genocida que é o sionismo.
Este artigo foi publicado originalmente pela rede Middle East Eye em 11 de janeiro de 2024.
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