Enquanto Israel tenta escapar de suas acusações de genocídio na Faixa de Gaza, ao apelar a uma narrativa distorcida e artificial frente ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), relatos chocantes da vida em Gaza sob as bombas israelenses são cada vez mais acessíveis, para que todos vejam e tentem digeri-los. Don’t Look Left: A Diary of Genocide — em tradução livre, Não desvie os olhos: Um diário do genocídio (Fasila, 2023) —, por Atef Abu Seif, reúne testemunhos do dia-a-dia dos dois primeiros meses de ofensiva militar israelense contra a população de Gaza.
O autor é ministro da Cultura da Autoridade Palestina. Abu Seif estava visitando o enclave junto de seu filho, quando Israel lançou seus ataques, em retaliação a uma operação transfronteiriça do grupo palestino Hamas, em 7 de outubro. A viagem deveria durar três dias. No entanto, um mergulho idílico no Mar Mediterrâneo se tornou rapidamente um pesadelo, quando o ruído dos bombardeios chegou à praia. Ao meio-dia, ao juntar-se a jornalistas na Câmara de Imprensa em Ramal, Abu Seif recebeu a primeira confirmação dos ataques aéreos e uma enorme tensão lhe tomou de assalto. “A única coisa em que concordamos é que não tínhamos ideia de para onde tudo isso poderia nos levar”.
Os diários de Abu Seif são permeados de perdas devido às ações genocidas do Estado de Israel. Parentes, amigos e colegas são assassinados dia após dia; famílias e bairros inteiros, varridos do mapa. O advento da fome por toda parte, falta de insumos médicos para os feridos, cirurgias realizadas sem anestesia para tentar salvar a vida de pessoas mutiladas para sempre. Em último caso, o que é sobreviver? Abu Seif recorda uma pergunta feita a ele por um jornalista ainda em 2014, após a chamada Operação Margem Protetora, outra brutal agressão de Israel. Brincando, perguntou o repórter: “Quem venceu?” Abu Seif reivindicou sua vitória, afinal sobreviveu. “Não tenho certeza se minha resposta seria a mesma ao fim desta guerra. Perdi coisas demais”.
À medida que os bombardeios se intensificam, o mesmo vale para a luta por um lugar seguro ou sequer um teto. Israel compeliu os palestinos a fugir do norte ao sul de Gaza, acompanhados de organizações internacionais. Contudo, o Estado ocupante não deixou de atacar supostas “zonas seguras”, sobretudo aquelas para onde instruiu a fuga. As condições fizeram com que o escritor recordasse da Nakba, ou “catástrofe” palestina, quando 800 mil pessoas foram expulsas de suas terras por milícias coloniais. “Enfiei vários itens básicos em uma kuffiyeh [lenço palestino], que enrolei então numa coisa só. Foi assim com a Nakba, me pergunto”.
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A realidade do deslocamento forçado é uma imagem perene em sua obra, ecoando a Nakba de 1948, justamente quando Gaza passou a amparar milhares de refugiados palestinos, banidos de sua pátria para dar lugar ao Estado de Israel. Agora, conforme as pessoas fogem de um canto a outro, pedir direções é algo árduo, à medida que os deslocados superam e muito os residentes que decidiram ficar.
Aqueles que ficam, como o autor, sabem muito bem que não há lugar seguro na Faixa de Gaza. Como nota Abu Seif, amigos que acataram as ordens de evacuação de Israel foram assassinados no caminho. E diante da total aniquilação, pondera seu relato: O que resta alcançar? “Enquanto escrevemos”, reitera Abu Seif, “mantemos vivos os lugares, as memórias das ruas que agora são escombros, as casas arruinadas. Podemos não apenas impedi-los de nos tornar esquecidos, mas também criar um mapa para a reconstrução. Como eram antes, onde quer que estejamos”.
O genocídio israelense forçou os palestinos a se identificar com a morte. O que acontecerá caso sejam mortos? Abu Seif fala de crianças marcando seus nomes e detalhes pessoais nos braços e pernas, caso sejam assassinados, para que sejam identificados e velados por suas famílias. “Essa ideia de morrer e ser esquecido por todos é insuportável”, observa o autor. Mais além na obra, comenta um pouco mais sobre os métodos de identificação nos braços e pernas: “Pode parecer macabro, mas neste exato momento faz perfeito sentido: a forma mais lógica de pensar sobre a morte é pensar como se já estivesse morto”.
À medida que os ataques aéreos se tornaram cada vez ainda mais atrozes, ao contrário do senso comum, todavia, pareceram se normalizar. Embora o objetivo declarado de Israel seja “a morte de Gaza”, para os palestinos a única coisa que importa é que você não esteja em casa quando o míssil cair. O objetivo é meramente sobreviver e aqueles que ficam para trás tentam ajudar uns aos outros ao escavar as ruínas para resgatar parentes soterrados por escombros.
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Paralelo aos relatos diários do genocídio israelense em Gaza, estão os testemunhos do autor de como era a vida antes, a cultura e as tradições, sua influência na tecitura urbana — o que cada detalhe significava aos palestinos. Um senso de comunidade é quase protagonista da história. E mesmo diante da destruição imposta por Israel, prevaleceu este como uma espécie de tradição ancestral que define a própria identidade palestina: ajudar nos resgates, compartilhar comida, encontrar formas de obter eletricidade, peregrinar em conjunto a áreas, quem sabe, um pouco mais seguras.
Às vésperas da trégua, no fim de novembro, constatou o autor: “Se há trégua, Israel, no entanto, faz tudo que pode nos dias que a precedem. Não existe calmaria antes da tempestade, apenas tempestade antes da calma”.
Gaza, nesse entremeio, se tornou irreconhecível. Feitos simples, como dirigir um carro, não são possíveis, em meio à destruição total da infraestrutura civil. O preço de itens básicos se tornou exorbitante, devido ao cerco militar que impede sua chegada, e esperar em longas filas por um pedaço de pão se tornou parte do dia a dia. “Toda Faixa de Gaza é como uma longa, longa fila”.
Ler o diário de Abu Seif impõe diversas reflexões, mas reforça a importância de que os próprios palestinos contem suas histórias. Um genocídio ocorre ao vivo em nossas telas de televisão, um espetáculo macabro que se desenrola, e há poucos detalhes a serem ignorados. As atrocidades que Israel insiste em negar, apesar da abundante evidência em fotos e vídeos, chocaram todo o planeta. No entanto, o que dizem as pessoas à beira da extinção? A narrativa de Abu Seif oferece um ponto de vista perspicaz sobre os primeiros 60 dias de bombardeios israelenses, sem ainda um horizonte de paz e justiça, sob condições de fome endêmica e pouquíssima ajuda externa.
Como diz o autor: “A marcha da destruição segue adiante: como um eco, porém cada vez mais veloz, mais veloz, enquanto o teto sobre nossas cabeças fica menor e menor ainda”.