Há uma tendência em pensar as esferas públicas como inovações sociopolíticas essencialmente modernas. O filósofo alemão Jurgen Habermas, que cunhou a noção de esfera pública nos anos 1960, descreveu a ideia como um lugar entre o Estado e a sociedade civil, aonde gente comum debate racional e criticamente questões de interesse coletivo. Outros estudiosos se debruçaram sobre o conceito e seu significado, embora persista uma crença sobre se tratar de um fenômeno secular e pós-iluminismo. No entanto, algo bastante semelhante a uma esfera pública pode ser notado no mundo pré-moderno, incluindo instituições religiosas. A Bagdá da Idade Média é um desses lugares onde havia uma notável esfera pública, argumenta Atta Muhammad em seu livro Sufis in Medieval Baghdad: Agency and the Public Sphere in the Late Abbasid Caliphate (Os sufis na Bagdá medieval: Autonomia e esfera pública no fim do Califado Abássida, em tradução livre). De fato, havia diversas esferas públicas e uma população robusta e criticamente engajada.
No século XI, os movimentos sufis ganharam proeminência na sociedade. “O papel dos sufis em Bagdá, nas esferas política, social e religiosa, trouxe benefícios concretos à população comum … Figuras do sufismo tentaram suprir uma série de demandas institucionais, espirituais e materiais da população comum, por meio dos ribats [arrábidas], ou entidades beneficentes”. Esses retiros não eram as únicas instituições disponíveis ao público, mas estavam entre as mais eminentes, sobretudo durante as dinastias seljúcida e aiúbida. Ricos e pobres eram associados a tais retiros, que forneciam um espaço comum que elites, acadêmicos, sacerdotes, comerciantes e plebeus poderiam frequentar. Vale notar que, embora muitos retiros fossem financiados pelas elites, um grande número também recebia recursos e doações do público geral. Ofereciam uma série de atividades comunitárias e estavam no âmago da vida pública de Bagdá, incluindo, por exemplo, ao fornecer iniciativas de ensino.
Segundo Muhammad, havia dois tipos de instituições educacionais sufis — a primeira, referente a um relacionamento mestre-discípulo, onde um sheik orientava seus estudantes em uma série de matérias, desde crença e comportamento islâmico até treinamento profissional. Os pupilos poderiam aprender habilidades práticas para comércio e dia a dia, além de ensinamentos de caráter religioso.
O segundo tipo compreendia o complexo expandido das arrábidas, madrasas e mesquitas, que disseminavam conhecimento não apenas aos discípulos, mas também às massas. Estudantes de todo o mundo viriam a essas instituições para aprender. “No mundo islâmico medieval, viajar para obter conhecimento era um fenômeno comum”. Esses estudiosos tinham as mais diversas raízes socioeconômicas, demonstrando a ascensão de um público instruído na região de então. Bibliotecas eram parte importante desses retiros, contendo livros de acadêmicos e da sociedade em geral, ao transcender os limites de mesquitas, escolas e mosteiros, instaladas até mesmo em hospitais e mausoléus. Havia também muitos retiros sufis destinados às mulheres, ao promover, portanto, avanços de gênero. Acima de tudo, as arrábidas davam espaço e plataforma para que as pessoas debatessem os assuntos do dia.
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Instituições religiosas, no entanto, não eram as únicas esferas públicas acessíveis à população. “Pessoas que não pertenciam à elite criaram espaços pelos quais contribuíam ao bem comum … Esses grupos e organizações poderiam ser chamados de ‘associações cívicas’, dada a sua origem em grupos mercantis, espirituais e religiosos, com intuito de melhorar o padrão de vida de suas comunidades, cidades e aldeias”.
Contribuir ao bem comum era responsabilidade de todos, como demonstra um levante popular de 1069, quando um soldado turco tentou agredir uma mulher em frente à Mesquita Jami’a, em Bagdá. No dia seguinte, uma multidão tomou o lado de fora do palácio do califa, para reivindicar justiça. O califa foi informado sobre o incidente e nobres e comerciantes foram convocados para prontamente resolver a situação.
Sufis in Medieval Baghdad traz à luz um retrato fascinante da vida cívica na cidade iraquiana na Idade Média islâmica. Fica claro que uma variedade de instituições civis e comuns exerceu um papel fundamental em garantir segurança, educação e prosperidade econômica, junto de entes tradicionais de elite e do governo. A população de então estava não somente envolvida na vida pública, como participava ativamente da governança comunitária de seus bairros e cidades, sem distinção de classe ou título. Muhammad dá ao leitor uma perspectiva abrangente sobre quais ferramentas eram acessíveis ao povo, além de um quadro teórico para compreender o contexto. Sufis in Medieval Baghdad será uma adição bem-vinda aos estudos da vida pública ao longo da história, em particular, nos tempos pré-modernos.
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