Nas últimas décadas, novas corpo literário cada vez maior passou a estudar o papel da religião nas relações internacionais, em particular em uma era supostamente laica. Tudo isso desafia a teoria, já um tanto defasada, de predominância da ordem mundial do Ocidente liberal, além da tese de “fim da História”, disseminada após a Guerra Fria. Em franco contraste a essa narrativa, Samuel Huntington propôs em sua tese sobre o Choque de Civilizações que conflitos no mundo orbitariam cada vez mais as identidades civilizacionais, com um papel central à religião.
Seu argumento pareceu se confirmar após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, em Nova York, e os conflitos que o sucederam, nos quais a religião serviu como poderoso meio de mobilização. Desde então, “a religião está na vanguarda da política externa”, com potências globais “cada vez mais voltadas à crença como ferramenta para instaurar sua agenda”.
Apesar do crescente reconhecimento do papel da religião nos assuntos internacionais, teorias hegemônicas continuaram a ignorá-lo em sua análise das relações transnacionais, sobretudo no que se refere ao papel do Estado, comenta Peter Mandaville, organizador de The Geopolitics of Religious Soft Power — em tradução livre, A geopolítica do Soft Power religioso.
Ao tratar da lacuna acadêmica sobre o assunto, sua coletânea de contribuições adota o conceito de “soft power” proposto por Joseph Nye para seguir com a análise, definido como “habilidade de obter o que quer via atração em vez de coação ou pagamentos”. A obra expanda sua tese ao fato de que Estados contemporâneos se engajam em uma acirrada competição para conquistar “atratividade, legitimidade e credibilidade”, ao integrar o papel da religião a sua política externa. Essa forma de soft power também se tornou comum à medida que o globo avançou a uma nova ordem multipolar.
Os Estados Unidos sempre foram considerados uma anomalia nas teses de secularização, devido à altíssima influência da fé em partes do país e à importância da identidade religiosa nos pleitos eleitorais. Não surpreende, portanto, lermos a seguinte sentença: “Os Estados Unido empregam a religião como forma de soft power em sua política externa”, em particular desde que a Guerra Fria atingiu seu ápice, ao coadunar discursos anticomunistas e messiânicos exportados não só à Europa, como a países do Oriente Médio, leste e sudoeste da Ásia. Tais ações coincidiram com a ressurgência global do papel político da religião e, desde 11 de setembro de 2001, tomaram um caráter mais institucional.
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Seus adversários, Rússia e China, também usam o soft power religioso a seu bel-prazer. Moscou, por exemplo, defende “valores tradicionais” contrapostos ao “ultraliberalismo” do Ocidente, ao integrar cada vez mais a Igreja Ortodoxa ao Estado, incluindo ao “consistentemente reforçar a ênfase do Kremlin na soberania e na multipolaridade”. A China, de sua parte, buscou consolidar seus interesses via cultura em vez de intervenções diretas, como ao promover sua modalidade do budismo em países próximos, no Ocidente — onde a fé ganha entusiastas — e mesmo entre rivais geopolíticos, considerados “adversários no status global do budismo”, como Índia, Japão e Taiwan.
O escopo do livro é bastante amplo, embora seja esperado que vários capítulos se concentrem em estudos de caso no Oriente Médio e em países de maioria islâmica. Isso, quem sabe, ajuda a dar ênfase à relevância política e ao potencial catalisador da fé islâmica. Lemos, por exemplo, sobre a “diplomacia xiita” do Irã, embasada em um discurso de defesa dos oprimidos e de busca por justiça, como elementos “fundacionais” da política externa iraniana. Observa-se também a transformação da Turquia, de um Estado rigorosamente secular a um novo modelo nos últimos dez anos, ao recorrer à religião como soft power — muito embora oscile, com certa frequência, entre “rejeitar e abraçar seu legado otomano”.
E há também as várias tonalidades de “Islã moderado”, em países como Marrocos, Jordânia e Indonésia, cada qual com sua própria localidade e enfoque regional, além daqueles países mais inclinados aos interesses globais, como os abastados governos do Golfo, que construíram laços com Estados Unidos e aproveitaram a janela de oportunidade para projetar um novo sentido de “segurança” e “modernização”, no que concerne o Islã pós-11 de setembro.
Os capítulos que lidam com o uso da religião por países como Índia e Israel são reveladores. Sob o governo linha-dura do Partido Bharatiya Janata (BJP), chefiado pelo premiê Narendra Modi, a Índia se afastou de seu compromisso fundacional a um nacionalismo cívico, rumo a uma “forma de nacionalismo étnico assertivo e robusto, embasado em sua visão particular do hinduísmo”. Ainda assim, como parte das iniciativas para expandir sua influência, a Índia buscou reiterar sua própria diversidade religiosa — “desde que não envolva o Islã”. No entanto, como afirma o livro, ainda é incerto se esse caminho divisivo e reacionário trará benefícios de longo prazo.
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Israel certamente não está entre no topo do ranking dos países que recorrem ao soft power em sua política externa. Seu enfoque é segurança e militarismo, sobretudo vinculado aos interesses dos Estados Unidos. Não obstante, é fato que o Estado colonial busque investir não somente nas comunidades judaicas no exterior, como também na direita e ultradireita cristã evangélica, que compartilha paixões fanáticas e ideológicas com o projeto sionista. Seria interessante se a obra chegasse a debater o impacto do genocídio imposto contra Gaza e o fracasso de sua campanha de propaganda de guerra, sobretudo entre os jovens judeus americanos — que, sem abandonar sua identidade judaica, se proclamam cada vez mais antissionistas.
Em outras palavras, The Geopolitics of Religious Soft Power, organizado por Peter Mandaville, é possivelmente um trabalho pioneiro ao mergulhar nas várias estratégias adotadas por Estados modernos no sentido de integrar religião e política externa. Embora o livro reconheça limitações — como um ponto de vista potencialmente “reducionista” sobre a religião e os desafios postos para contextualizar o uso de soft power —, trata-se de um projeto que introduz alicerces a uma compreensão fundamental de um aspecto ainda pouco estudado das relações internacionais — em particular diante de um novo século pós-secular e multipolar.