Dois bebês com os olhos fundos e os rostos macilentos, um vestido com um cardigã amarelo e o outro em uma camisa listrada, deitam-se lado a lado em um leito médico de Gaza, seus corpos magérrimos e pequenos, com ossos protuberantes sob fraldas grandes demais para eles.
Esta foi a cena registrada na segunda-feira (4) por uma reportagem especial da agência Reuters, no centro médico de Al-Awda, na cidade de Rafah, no extremo sul de Gaza, sob bombardeios de Israel.
De acordo com a enfermeira Diaa al-Shaer, crianças com desnutrição grave e copiosas doenças chegam em números sem precedentes a sua clínica. “Nos deparamos com um enorme número de pacientes que sofrem desse mal, que é a desnutrição”, disse Diaa.
O bebê no cardigã amarelo, Ahmed Qannan, pesa seis quilos, metade do que pesava antes de se deflagrar o genocídio israelense em Gaza, segundo sua tia, Israa Kalakh, que permanece ao seu lado. “A situação piora a cada dia que passa. Que Deus nos proteja do que está porvir”, declarou Israa à agência Reuters.
Quase cinco meses depois de Israel lançar sua agressão a Gaza, por ar, mar e terra, resultando em um deslocamento em massa, além de escassez de alimentos, remédios e outros insumos, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu a existência de uma crise alimentar, parte de uma catástrofe humanitária ainda mais ampla.
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No domingo (3), o Ministério da Saúde de Gaza confirmou que ao menos 15 crianças morreram de fome ou desidratação no hospital Kamal Adwan, em Beit Lahiya, no norte de Gaza — região na qual a falta de insumos básicos alcança níveis extremos.
“Os números verdadeiros podem, infelizmente, ser muito maiores”, alertou Christian Lindmeier, porta-voz da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A piora na crise de fome intensificou as críticas a Israel no cenário global, até mesmo por parte da vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, cujo governo mantém o envio de armas e a cobertura diplomática do Estado ocupante.
Harris admitiu que o povo de Gaza está morrendo de fome e instou Israel a fazer mais pelo fluxo de ajuda humanitária.
A agência Reuters obteve um vídeo gravado no último sábado (2), no hospital Kamal Adwan, no qual uma mulher, Anwar Abdulnabi, chora sobre o corpo de sua filha, Mila, ainda um bebê, que morreu por falta de cálcio, potássio e outros nutrientes. “Minha filha, minha linda filha faleceu”, chorou Anwar diante dos repórteres.
De acordo com o Dr. Ahmad Salem, que trabalha na unidade de terapia intensiva (UTI) do centro de saúde, um dos fatores que leva ao alto índice de mortalidade infantil é que mesmo as mães, ainda grávidas, já sofriam de desnutrição.
“As mães não conseguem amamentar seus filhos. Não temos leite em pó. Isso levou a mortes de crianças aqui na terapia intensiva, mas também na enfermaria, tivemos várias mortes”, reportou o médico.
‘Desamparo e desespero’
A entrega de alimentos a toda a extensão de Gaza é muito inferior do que é necessário. A crise é ainda pior na região norte, porque as travessias israelenses que permitem um pequeno fluxo de insumos assistenciais estão todas no sul.
A caminho do norte, alguns caminhões humanitários se deparam com multidões desesperadas; outros se veem alvos de disparos e bombardeios de Israel.
“O sentimento de desamparo e desespero entre pais e médicos, em perceber que a assistência que salva vidas está a somente alguns quilômetros de distância, mas fora de alcance, me parece insuportável”, Adele Khodr, diretora regional do Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Em seu mais recente relatório sobre a situação, emitido em 1° de março, a Agência das Nações Unidas para Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) confirmou que uma média diária de 97 caminhões adentrou em Gaza no mês de fevereiro — abaixo dos 150 em janeiro e muito abaixo da meta de 500 caminhões por dia.
Agências das Nações Unidas e grupos humanitários destacam que a insuficiência de insumos se deve às ações de Israel, incluindo fechamento das travessias ao norte, operações militares ainda em curso e um sistema de checagens complexo e arbitrário sobre o que entra e sai de Gaza.
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Israel insiste na alegação de que não restringe a entrada de ajuda humanitária ou itens médicos e culpa as próprias agências por não conseguir realizar suas operações. As alegações, contudo, servem a uma agenda de deslegitimação do trabalho humanitário, a fim de zerar o fluxo de bens e serviços aos palestinos de Gaza.
Israel mantém ataques a Gaza desde 7 de outubro, em retaliação a uma ação transfronteiriça do grupo Hamas, que capturou colonos e soldados. Conforme o exército israelense, cerca de 1.200 pessoas foram mortas na ocasião e outras 253 foram tomadas de reféns.
Contudo, desde então, reportagens investigativas do jornal israelense Haaretz confirmaram que grande parte das fatalidades incorreu de “fogo amigo”, sob ordens militares gravadas para que tanques e helicópteros disparassem contra os reféns.
Em Gaza, mais de 30 mil pessoas foram mortas pelos ataques israelenses, além de 70 mil feridos e dois milhões de desabrigados, em meio à destruição de 70% da infraestrutura civil. Hospitais, escolas, zonas residenciais, abrigos e rotas de fuga não foram poupados.
As ações israelenses são punição coletiva, crime de guerra e genocídio.
De volta ao centro médico Al-Awda, em Rafah, um menino de somente 12 anos, chamado Yazan al-Kafarna, morreu nesta segunda-feira. A Reuters obteve imagens do menino no sábado, com a pele cinzenta e macilenta, membros esqueléticos.
O Dr. Jabir al-Shaar, chefe de pediatria do Hospital Abu Yousef Al-Najar, também em Rafah, onde o menino recebia cuidados até ser transferido a Al-Awda, reportou que Yazan sofria de paralisia cerebral e dependia de uma dieta especial para obter nutrientes — contudo, que lhe foi privada pelas ações de Israel.
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O médico atribuiu o óbito à desnutrição. O caso ganhou atenção internacional, mencionado na segunda-feira pelo emissário palestino nas Nações Unidas, Riyad Mansour, durante encontro da Assembleia Geral da entidade internacional.
Sua mãe, conhecida agora pelo epíteto tradicionalmente palestino de Umm Yazan al-Kafarna — “mãe de Yazan al-Kafarna —, não deixou seu lado até sua morte.
“Ele costumava brincar e sorrir. Eu brincava com ele”, lamentou.