A viagem do mandatário brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva ao Egito e Etiópia, marcou um momento importante da chamada “virada rumo ao Sul Global”. Infelizmente, os meios de comunicação majoritários nacionais ressaltaram apenas a correta declaração em defesa do povo palestino diante do genocídio promovido pelo Estado sionista. O potencial de crescimento deste movimento de países independentes é incomensurável. Cabe ressaltar trechos do discurso do presidente Lula durante abertura da 37ª Cúpula de Chefes de Estado e Governo da União Africana (UA), em Adis Abeba, Etiópia, no dia 17 de fevereiro de 2024.
A presença brasileira e a herança africana no Brasil
É com grande alegria que volto pela vigésima primeira vez à África, agora novamente como presidente do Brasil, para me dirigir aos líderes da União Africana. Venho para reafirmar a parceria e o vínculo do nosso país e do nosso povo com este continente irmão.
A luta africana tem muito em comum com os desafios do Brasil. Mais da metade dos 200 milhões de brasileiros se reconhecem como afrodescendentes. Nós, africanos e brasileiros, precisamos traçar nossos próprios caminhos na ordem internacional que surge.
A mudança no “equilíbrio” do Sistema Internacional
Tentativas de restituir um sistema internacional baseado em blocos ideológicos não possuem lastro na realidade. A multipolaridade é um componente inexorável e bem-vindo do século XXI. A consolidação do Brics como principal espaço de articulação dos países emergentes é um avanço inegável. Sem os países em desenvolvimento não será possível a abertura de novo ciclo de expansão mundial, que combine crescimento, redução das desigualdades e preservação ambiental, com ampliação das liberdades. O Sul Global está se constituindo em parte incontornável da solução para as principais crises que afligem o planeta.
A necessária mudança na ONU e o papel do continente africano
De uma ONU fortalecida e que tenha um Conselho de Segurança mais representativo, sem países com poder de veto, e com membros permanentes da África e da América Latina. Há dois anos a guerra na Ucrânia escancara a paralisia do Conselho. Além da trágica perda de vidas, suas consequências são sentidas em todo o mundo, no preço dos alimentos e fertilizantes.
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Não haverá solução militar para esse conflito. É chegada a hora da política e da diplomacia. Senhoras e senhores, com seus um bilhão e 500 milhões de habitantes, e seu imenso e rico território, a África tem enormes possibilidades para o futuro. O Brasil quer crescer junto com a África, mas sem ditar caminhos a ninguém.
O perfil e o potencial da União Africana
A União Africana tem como membros todos os 55 países do continente. Dada a dimensão territorial, a África se divide em sub-regiões com elevado grau de autonomia e interdependência. Observemos as regionalidades e seus Estados.
África Central
Burundi, Camarões, República Centro-Africana, Chade, República do Congo, República Democrática do Congo, Guiné Equatorial, Gabão, São Tomé e Príncipe.
África Oriental
Comores, Djibuti, Eritreia, Etiópia, Quênia, Madagascar, Maurícias, Ruanda, Seychelles, Somália, Sudão do Sul, República do Sudão, Tanzânia e Uganda.
Norte da África
Argélia, Egito, Líbia, Mauritânia, Marrocos, República Saaraui e Tunísia.
África Austral
Angola, Botsuana, Essuatíni, Lesoto, Malawi, Moçambique, Namíbia, África do Sul, Zâmbia e Zimbábue.
Oeste da África
Benin, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné Bissau, Libéria, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo.
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Se formos elencar os problemas determinantes que atravessam todos (ou quase todos) os países da União Africana podemos listar a carência de infraestrutura, a necessidade de investimentos de longo prazo, a busca permanente por soberania alimentar, a inserção produtiva da enorme população jovem e os riscos de instabilidade na política doméstica — neste caso, com redes salafistas, manipulação de disputas étnicas e possível separatismo. A influência das potências ocidentais segue sendo um problema, pois, através de suas transnacionais (TNCs), aprofundam a primarização de suas economias.
Um exemplo completo é a região leste da República Democrática do Congo que há muito é palco de ações armadas de mais de 120 grupos armados que lutam por uma parte do ouro e de outros recursos naturais da região, ao mesmo tempo que efetuam assassínios em massa. De acordo com a ONU, há uma crise humanitária sem precedentes que provocou o deslocamento de 250 mil pessoas.
A exploração de minerais estratégicos com preços rebaixados e a porosidade do aparelho de Estado — com Forças Armadas passíveis de influência ocidental — favorecem o chamado nexo econômico-criminal, com agentes locais e regionais a serviço do capital estrangeiro e especulativo. Assim, algumas demandas securitárias são sempre emergenciais e levam às elites dirigentes a tomarem decisões no plano das relações exteriores, orientando suas alianças a partir da presença do capital e missões de cooperação não ocidentais.
Diante da desinformação sistemática dos meios de comunicação ocidentais, terminamos por associar os países africanos apenas a crises sistêmicas, passando longe da dimensão virtuosa do chamado Renascimento Africano (Renascença no termo original em inglês). Segundo o professor da UNIFESP Anselmo Otávio, especialista em África:
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“O African Renaissance, no âmbito regional, considera que a maior articulação entre todos os povos africanos é fundamental para romper com os flagelos existentes no continente. Já na interação entre o continente africano e o mundo, o African Renaissance deseja uma forma diferenciada de pacto, este não mais marcado pelo assistencialismo, mas sim pela cooperação.”
A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e a saída de países-chave
Em 28 de janeiro deste ano, Burkina Faso, Níger e Mali deixaram a CEDEAO denunciando as “sanções ilegais, ilegítimas, desumanas e irresponsáveis” aplicadas pelo bloco aos seus governos —levando a morte de mais de 125 mil pessoas; na maior parte, mulheres e crianças. Os três países são ex-colônias francesas e sofrem de graves problemas de segurança interna, péssimas condições de troca de minerais — com as empresas da França pagando preços ínfimos e sem nenhum sinal de industrialização — e dirigentes mais vinculados às decisões estratégicas do ministério de Relações Exteriores da França do que de seus próprios países.
Infelizmente, a forma de tomada do poder e nacionalização de interesses de Estado se deu através de golpes e insurgências dos militares profissionais. De todo modo, entre elites civis corruptas e neocoloniais e a oferta de cooperação e segurança vindas da Rússia, combinando com a sempre permanente possibilidade de investimento chinês de médio e longo prazo, Níger, Mali e Burkina Faso criaram a Aliança dos Estados do Sahel, reorientando sua política externa.
O caminho da multipolaridade nas alianças, investimentos e cooperação
Apesar da ignorância e triste papel desinformativo a respeito das potencialidades brasileiras e da União Africana, há um caminho traçado pela diplomacia profissional de nosso país e vai ao encontro do Renascimento Africano. O Brasil tem uma presença já consolidada na área da cooperação internacional, com ênfase na produção de alimentos nos países parceiros. A partir deste caminho, outras vias podem se abrir.
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A escala de investimentos chineses em projetos de infraestrutura de médio e longo prazos opera como catalisadora para que mais países do continente busquem relações e parcerias semelhantes. A China abriu uma nova trajetória sendo secundada por Rússia, Turquia e Irã. A tendência é que a Índia amplie ainda mais sua presença através da costa do Oceano Índico e que projetos de investimentos triangulares — entre dois países investidores e o receptor de capitais — aumentem em escala considerável.
Com soluções de problemas de segurança e defesa regional, a União Africana pode ser o motor de multilateralismo necessário para o desenvolvimento continental. O Brasil tem um papel fundamental nesta etapa, apesar da desinformação sistemática promovida contra a política externa altiva e soberana da diplomacia profissional brasileira em busca das parcerias africanas.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.