Em 12 de novembro de 2023, um avião presidencial brasileiro chegou a uma base aérea militar na capital Brasília, trazendo a bordo 32 brasileiros-palestinos que saíram de Gaza após cerca de um mês do início da guerra sangrenta lançada pela ocupação israelense contra o povo palestino na Faixa de Gaza e, com menor brutalidade, na Cisjordânia.
Sair desse inferno para chegar ao Brasil não é menos complicado e difícil do que permanecer sob o bombardeio. A faixa, cercada há 17 anos, tem apenas uma fronteira com o Egito, cujo regime se posiciona de forma ambígua após as acusações israelenses de que é ele quem fecha a única passagem de Gaza para o mundo exterior, impedindo assim a entrada de ajuda humanitária ou a saída dos feridos para tratamento.
Então vieram as acusações do presidente americano Joseph Biden contra o presidente egípcio Abdel Fattah al-Sisi de ser ele quem fecha a passagem de Rafah, confirmando o envolvimento desse regime em aumentar o sofrimento do povo palestino. Isso sem falar nos escândalos de corrupção na travessia, onde oficiais de inteligência egípcios cobram entre US$7 mil e US$10 mil por pessoa para deixar esse inferno.
Um mês de coordenação com a embaixada brasileira na Cisjordânia
Em conversa com o Monitor do Oriente, Mohamed Farahat, pai de quatro filhos e um dos que chegaram de Gaza, disse: “Eu recusava a ideia de sair de Gaza, pensávamos que essa agressão, como as anteriores, não duraria muito. Acreditávamos que duraria dias ou, no pior dos casos, algumas semanas, mas o perigo começou a se aproximar do lugar onde vivemos. A casa ao lado foi destruída, o que causou grandes danos à minha casa, tornando impossível viver ali.”
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Acrescentou Mohamed: “A embaixada brasileira começou a se comunicar conosco em 10 de outubro de 2023, pois minha esposa tem cidadania brasileira. Eles nos pediram para nos dirigirmos ao sul, para nos aproximarmos da única passagem na fronteira palestino-egípcia [Rafah]. A mudança não foi fácil, pois a jornada para escapar, cobrindo vários quilômetros, durou um mês inteiro, enquanto o bombardeio israelense nos perseguia de um lugar para outro. Como todos os habitantes de Gaza, acostumados aos ataques israelenses e ao deslocamento constante, fiz questão de levar uma mochila contendo todos os documentos importantes da minha família. Na verdade, à medida que a brutalidade israelense aumentava, percebi que precisava sair para proteger minha família, e a condição fundamental era preservar minha dignidade ao chegar ao Brasil, significando que eu não queria encontrar minha família e eu desabrigados nas ruas do Brasil. Eu queria uma casa que preservasse minha dignidade, e algumas entidades brasileiras entraram em contato comigo para me assegurar que havia uma casa à minha espera, enviando-me algumas fotos e vídeos desta casa. A embaixada brasileira confirmou essas notícias, o que facilitou minha aceitação da ideia de partir, que se concretizou após exatamente um mês na passagem de Rafah.”
No mesmo contexto, a Sra. Nora Al-Jamal, mãe de dois filhos órfãos de pai com cidadania brasileira, relatou ao Monitor do Oriente: “A embaixada brasileira em Ramallah nos informou com cerca de um mês de antecedência que deveríamos partir. Como não existia mais a casa em que vivia na Cidade de Gaza, tive que partir para Khan Younis, onde minha família vive, e de lá começamos os preparativos com a embaixada. Inicialmente, sugeri que nos levassem ao Egito até que a situação em Gaza se acalmasse e então pudéssemos retornar, mas eles recusaram, dizendo que tinham ordens para transferir aqueles com cidadania brasileira para o Brasil.”
O caminho para o Brasil
Continuou Mohamed: “Em 10 de novembro, deixamos a passagem de Rafah, e meus sentimentos eram ambíguos. Por um lado, fiquei aliviado porque meus filhos estavam seguros, mas por outro, olhando para Gaza pela janela do ônibus enquanto nos dirigíamos lentamente para o Cairo, comecei a chorar. Senti como se tivesse traído minha terra. Eu salvei meus filhos, mas e sobre o resto das crianças de Gaza?”
“Chegamos ao Cairo, onde os meios de comunicação estavam nos esperando”, observou. “Lembro-me de um jornalista me perguntando: ‘Qual é a primeira coisa que você fará no Brasil?’ E minha resposta imediata foi: ‘Tomar um banho e dormir.’”
“Em 11 de novembro, deixamos o Cairo e chegamos à capital brasileira, Brasília, no dia seguinte. O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva estava nos esperando e nos recebeu calorosamente, expressando seu profundo pesar pelo que o povo palestino estava enfrentando. Vi lágrimas em seus olhos enquanto falava. Dois dias depois, deixamos a capital rumo a São Paulo, e de lá para o resort onde ficaríamos hospedados.”
Dificuldades e surpresas
Segundo o relato: “Após chegarmos ao resort, fiquei chocado, pois a realidade era diferente das fotos. Nos deram uma pequena cabana de madeira para uma família de seis pessoas. O lugar estava cheio de refugiados afegãos, e foi uma associação da igreja, não o Estado brasileiro, que nos providenciou este lugar. Algumas instituições de saúde governamentais nos acompanharam nos primeiros dias, mas começaram a desaparecer gradualmente.”
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“Outro problema que enfrentamos foi a comida, não estamos acostumados com a comida brasileira, mas agora somos obrigados a lidar com ela. A comida é servida em horários fixos; se você se atrasar para a sua refeição, significa que você vai ficar sem comer”, prosseguiu Mohamed. “Se comparar a recepção que tivemos em Brasília com a nossa realidade atual neste lugar, parece que alguém nos jogou da aeronave em queda livre e nos deixou à nossa própria sorte. Estamos vivendo isolados no meio da floresta, mais de 100 km ao norte de São Paulo, e mesmo que estivéssemos no coração de uma cidade grande, não poderíamos fazer muito, porque, naturalmente, não temos dinheiro.”
“Agora entramos no mês do Ramadã, o mês de jejum para os muçulmanos, e precisamos de comida especial, o que conseguimos acordar com a administração do resort, porque as filas de comida na frente da cozinha do resort são longas e me lembram as filas de pessoas esperando para receber ajuda das organizações humanitárias em Gaza.”
“Agradecemos à igreja pelo que nos foi oferecido dentro de suas possibilidades, mas é lamentável que as instituições árabes e organizações islâmicas não tenham nos dado atenção, embora tenhamos começado a nos comunicar com alguns poucos líderes religiosos muçulmanos que começaram a nos visitar recentemente.”
De acordo com Nora Al-Jamal: “Estou em constante conflito com meus filhos, que não querem continuar seus estudos em português, dizendo sem parar que querem voltar para Gaza, pois a morte lá é melhor do que a vida aqui.”
“Não falamos a língua, não temos trabalho, moradia decente, dinheiro ou um futuro claro”, reportou Nora. “Às vezes, sinto que meus filhos estão certos e que devo fazer o impossível pelo futuro deles. A associação da igreja brasileira diz que nos dará trabalho no futuro, como fazem com os refugiados afegãos, mas na realidade não podemos fazer os trabalhos que os irmãos afegãos fazem, pois temos qualificações acadêmicas e experiências, além de que não somos refugiados, mas cidadãos brasileiros.”
Futuro incerto
Será que este grupo voltará a Gaza após o fim da guerra de extermínio, ou continuará sua vida no Brasil? Mohamed Farahat reiterou: “Na verdade, Gaza foi completamente destruída, e isso levanta uma questão objetiva: Voltar para quê? Se eu voltar, eu e meus filhos ficaremos desabrigados nas ruas por anos até que Gaza seja reconstruída. Acredito que somos forçados a resistir e continuar aqui.”
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Nora Al-Jamal observou: “Minhas responsabilidades são grandes, estou sozinha e sou responsável por dois filhos em um país distante. Eu não queria vir para o Brasil desde o início, mas agora que chegamos, e o retorno seria muito caro, e nós não temos esse luxo de pagar passagens aéreas e começar do zero em Gaza após anos, receio que teremos que continuar nossas vidas aqui. Seremos forçados a nos adaptar, pois não temos outras opções.”
Esperanças e soluções no horizonte
O Monitor do Oriente entrou em contato com o sheikh Hussam Al-Bustani, um dos primeiros líderes religiosos muçulmanos a chegar ao local onde as famílias palestinas estão vivendo. Ele representa o Centro Inter-Fé para o Diálogo e Educação nas Américas (CIFA) no Brasil e, com o futuro dessas famílias no Brasil em mente, confirmou que, com um convite oficial da Sociedade de Caridade Islâmica do Tatuapé, estão trabalhando intensamente para fornecer a essas famílias casas próximas às comunidades islâmicas para facilitar sua integração na sociedade brasileira. No entanto, são tentativas que podem ou não ter sucesso, dado que os recursos dessas associações são limitados.
Ele enfatizou que a falha não significa que eles serão deixados ao seu destino; em vez disso, trabalharão para encontrar oportunidades de emprego para eles e fornecerão assistência de forma contínua. Hussam Al-Bustani afirmou que eles, como associações e organizações islâmicas, se sentem diretamente responsáveis pelos idosos que chegaram e estão trabalhando para atender todas as suas necessidades, além de estarem atualmente trabalhando para estabelecer um fundo de apoio para os palestinos de Gaza.
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