No último dia 25, uma segunda-feira, o jornalista Saher Akram Rayan, correspondente da agência Wafa, estava com seu filho Anas na estrada de Haidar Abdel Shafi, na zona Oeste da Cidade de Gaza, tentando ajudar os vizinhos feridos por bombardeios, quando ambos foram atingidos.
Rayan tornou-se mais um dos 130 profissionais de midia que foram mortos desde 7 de outubro, segundo o Sindicato dos Jornalistas Palestinos. Como muitos outros em campo, ele não era nenhum principiante inexperiente, a ponto de se expor sem cuidados. Na verdade, já estava há mais de 20 anos trabalhando para a Wafa, período marcado com sucessivos e graves ataques de Israel. Mas desta vez, havia um sinal de alerta que não poderia ser ignorado por ninguém na imprensa.
Desde que Israel matou a jornalista Shireen Abu Akle, claramente identificada como profissional de mídia, protegida por colete e capacete com a inscrição correta, a imprensa sabe que se trata de um trabalho visado. Mas desde 7 de outubro, os casos se acumularam batendo recordes de mortes de profissionais em comparação a qualquer guerra, fazendo organizações profissionais recorrerem aos tribunais internacionais. Trata-se da versão mais violenta da guerra de narrativas historicamente travada por Israel, onde a voz palestina é silenciada com a morte.
No entanto, os jornalistas continuam se levantando e enfrentando os riscos de cobrir os acontecimentos em Gaza como uma atividade vital para vencer essa guerra e transmitir a situação palestina ao resto do mundo. Foi sobre isso que MEMO foi ouvir jornalistas que sobreviveram, mas que teriam milhões de motivos para afastar-se do trabalho. São eles os palestinos Wael Al-Dahdouh e ….Mansour, ambos agora vivendo em Doha, ambos com a família morta por Israel.
A força vem da fé palestina
Wael Al-Dahdouh precisou mudar-se para o Catar para e cuidar de um ferimento que se mostrou mais grave do que imaginava quando saiu do hospital após ver seu colega morrer em ataque de Israel.
Sua história ficou conhecida no mundo todo quando por ter passado sucessivas perdas, até que não restasse mais ninguém de sua família, e ainda assim voltou a trabalhar. Em Gaza, era o chefe do escritório de midia da TV Al Jazeera. No dia 25 de outubro de 2023, enquanto fazia transmissões ao vivo, um bombardeio de Israel matou sua mulher, dois filhos e um neto.
Al-Dahdouh continuou trabalhando porque entendeu que era isso que a família, agora morta, esperaria dele. Achou que com o trabalho em Gaza honraria a memória de sua mulher. Pouco mais de dois meses depois, Israel lhe proporcionou outra tragédia. Seu filho mais velho, o jornalista Hamza Dahdouh, morreu aos 27 anos em um carro bombardeado pela ocupação. Ainda assim, mais uma vez agarrou-se ao trabalho.
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A última tragédia aconteceu quando Al- Dahdouh estava cobrindo os ataques à Gaza junto com o repórter fotográfico Samer Abudaqa e os ataques os atingiram. Seu colega não resistiu. Ele sobreviveu mas descobriu que seu braço estava praticamente destruído. Em Doha, terá cirurgias e tratamento que deve demorar pelo menos um ano.
Foi lá que Wael conversou com o MEMO e falou da reação que intrigou o mundo todo. Depois de uma dor indescritível, das perdas que derrubariam qualquer ser humano, de onde veio a força para seguir trabalhando? Seria desumano achar que o jornalismo exige isso de uma pessoa tão dilacerada pela dor. “Foi a fé em Deus, a força de Allah”, ele respondeu. E também, explicou, foi a convicção palestina de que é preciso resistir com a vida.
MEMO quis saber a sua impressão sobre o modo como os meios de comunicação no mundo estão lidando com tantas mortes de jornalistas. Para ele, a imprensa precisa se preocupar em ouvir e transmitir a voz palestina, porque sem isso não há jornalismo.
O colega de Wael, Mansour, tem uma história diferente. Ele saiu de Gaza antes, estou na Inglaterra, e mudou-se para Doha onde apoia a comunicação do escritório político do Hamas. Mas foi de lá que ele acompanhou as mortes em sua família – os irmãos, os primos, e as histórias horríveis de como elas aconteceram.
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“Eles estavam deslocados e a caminho de uma tenda humanitária. Estavam perto, mas quando meu primo se aproximou da entrada, soldados atiraram nele, que caiu. Meu outro primo correu para socorrê-lo, e foi atingido também. Os dois estavam caídos, feridos, mas não estavam mortos. Minha mãe queria socorrê-los, mas então veio um tanque israelense e passou por cima deles”. Depois, ele soube da morte dos irmãos e não teve mais notícias de sua mãe.
A última imagem que teve de seu pai foi dele revirando escombros da casa onde viviam. Isso porque embaixo de tudo ele sabia que havia alguns sacos de farinha da família e o pai agora tentava alcançá-la.
Mansour explica que se mantém trabalhando como jornalista porque é o meio de se manter em conexão com pessoas que ele já nem sabe se estão vivas e para ajudar a resistência palestina a se comunicar com o mundo. Todos os assuntos que ele trata falam na verdade de sua própria história. “É a nossa história. É por isso que não desistimos”.
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