“A voz do sul em apoio à Palestina cresce forte a cada dia”, disse o embaixador boliviano no Reino Unido durante uma conferência realizada em Londres em 22 de agosto de 2015. Participantes de Brasil, Bolívia, Equador, Cuba, Chile e Granada relataram mudanças tectônicas na ocasião, tanto em termos de governo, quanto sociedade civil, com a ajuda do boom das redes sociais e maior diversificação das redes de imprensa alternativas.
O diplomata cubano Jorge Luis Garcia destacou que seu país foi o primeiro Estado latino-americano a romper laços com Israel, em 1973. Mais atrás, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) votou o destino dos palestinos, em 1947, a Cuba pré-revolucionária foi um dos 13 países a se posicionar contrariamente — o único da América Latina. Cuba continuou a demonstrar solidariedade ao povo palestino de maneira consistente, ao defender o direito de retorno dos refugiados e reivindicar a retirada completa dos soldados e colonos ilegais israelenses dos territórios ocupados.
O então ministro da Cultura do Equador, Guillaume Long, entre outros, prestou homenagem a Cuba como “gigante da política entre o Sul Global”, ao citar seu apoio a movimentos por libertação na África e sua intervenção junto à Síria durante a guerra árabe-israelense de 1973. “Somos herdeiros orgulhosos dessa forte posição internacionalista, em solidariedade à Palestina”, comentou Long na ocasião.
Resposta diplomática
São os governos de esquerda e centro-esquerda que melhor responderam às reiteradas violações de Israel da lei internacional e, sobretudo, seus brutais ataques a Gaza.
Após a guerra contra os palestinos Gaza de 2009, intitulada “Operação Chumbo Fundido”, Venezuela e Bolívia cortaram laços diplomáticos com Israel. Após os assassinatos dos tripulantes do navio humanitário Mavi Marmara, de bandeira turca, em 2010, a Nicarágua também suspendeu relações. A resposta ao massacre de 2014 contra Gaza foi sem precedentes até então, com países como El Salvador, Chile, Equador, Peru e Brasil retirando embaixadores de Tel Aviv como forma de protesto e três países já acusando Israel de cometer genocídio.
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O professor israelense Ilan Pappé falou à conferência de Londres em 2015 e expressou entusiasmo sobre o apoio latino-americano à causa palestina. Conforme seu relato, há um foco particular em questões fundamentais de direitos humanos, em lugar do evasivo e nebuloso “processo de paz”. “Na América Latina”, afirmou Pappé, “não há penduricalhos, não há camadas de culpa”. Alegações de antissemitismo, portanto, são muito menos eficazes.
História em comum
Diversos emissários comentaram sobre as experiências em comum entre a Palestina e diversos países latino-americanos, desde a colonização à hegemonia de potências estrangeiras em termos de economia e controle militar, habitualmente disfarçada como “cooperação”. Invasão, propina, coação e mudança de regime por meio de assassinatos políticos — tudo isso transcorreu na América Latina.
O dr. Daud Abdullah, diretor do MEMO em Londres, associou o fiasco da Baía dos Porcos em Cuba à tentativa de forças pró-Estados Unidos para destituir o governo recém-eleito do movimento Hamas em 2006. Os 55 anos do bloqueio a Cuba podem não ser tão frontalmente violentos quanto os 17 anos de cerco militar contra Gaza; o paralelo, entretanto, ressoa eloquente entre os diferentes povos da América Latina.
Assim como os povos indígenas da América Latina que reivindicam direitos, os palestinos são difamados como terroristas e ameaça global — seja pelo fantasma do comunismo ou do islamismo político ou extremista.
Guillaume Long falou do papel do Estado israelense em fazer o “trabalho sujo dos Estados Unidos” na década de 1980, ao fornecer armamentos às “mais genocidas ditaduras” da América Central e do Sul e ao armar e treinar grupos paramilitares na Colômbia, incluindo milícias associadas aos cartéis do narcotráfico. Tamanha tradição segue até hoje, com envolvimento israelense no México, Honduras e República Dominicana.
“Onda rosa” palestina
A “onda rosa” que varreu a América Latina no início do século XIX — isto é, sua guinada à esquerda — foi encabeçada pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, seguida de perto por Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Correa, no Equador. O pesquisador chileno Francisco Domingues descreveu essa mudança drástica como reação a políticas neoliberais propagadas por Washington desde a década de 1970, impostas com mão de ferro em países como Argentina, Chile, Guatemala, Nicarágua, Peru, Brasil e outros.
Apesar das centenas de milhares de assassinados e desaparecidos — isto é, presos ou executados em segredo pela repressão política — o povo reagiu. Décadas depois, segundo Long, o apoio à Palestina é um reflexo natural de um ponto de vista anti-imperialista, como contestação simbólica à hegemonia dos Estados Unidos.
Padrões de votação nas Nações Unidas em relação à Palestina costumam bater com o alinhamento ou não em relação à política externa dos Estados Unidos. Em novembro de 2012, por exemplo, durante a votação para admitir a Palestina como Estado observador na Organização das Nações Unidas, todos os países latino-americanos votaram “sim”, com exceção de Panamá, Paraguai, Colômbia e Guatemala — então relegados à esfera americana.
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A professora e pesquisadora brasileira Arlene Clemesha reiterou na ocasião que a posição de seu governo sempre adotou uma tradição de “equilíbrio” no que diz respeito a Israel e Palestina, mas que a sociedade civil se tornou cada vez mais engajada. O ano de 1982 vivenciou manifestações de massa contra a invasão israelense no Líbano e construiu as bases para o movimento de solidariedade com o povo palestino. Discussões sobre a Palestina alcançaram as manchetes, junto ao desenvolvimento de cursos acadêmicos e palestras, apesar dos contundentes esforços de movimentos sionistas para sufocar a discussão e censurar a matéria. Neste sentido, o então ministro equatoriano relatou “pressão” para não participar da conferência do MEMO na cidade de Londres.
Frágil união
Apesar da diversidade em termos de história, economia e orientação política, há diversas tentativas de se alcançar um nível de integração na América Latina. O bloco comercial regional do Mercosul foi fundado em 1991 — integrado ao mercado israelense em 2010 —, muito embora desafiado pela União das Nações Sul-Americanas (Unasul), com sua maior orientação política, fundada em 2008. Estados Unidos, por outro lado, operaram com afinco para consolidar a chamada Área de Livre-Comércio das Américas, ou Alca.
Disputas de longa data entre vizinhos se mantêm como obstáculos: a Bolívia tem relações com a Palestina, mas não com o Chile.
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Há, no entanto, alguns casos de sucesso — apesar de oscilações nos anos seguintes. De acordo com Domingues, a atenuação, ao menos temporária, das restrições americanas sobre o mercado cubano decorreu de esforços concentrados de parte da América Latina. Na ocasião, acrescentou, quando os Estados Unidos descreveram com beligerância a Venezuela, ao classificá-la como “ameaça extraordinária a sua segurança nacional e política externa” — em um tom que costumava preceder uma intervenção armada —, muitos Estados da região defenderam seu vizinho, forçando um incomum recuo de Washington.
Construção de base
No campo de base, Pappé conclamou a “galvanização de um claro movimento de solidariedade latino-americano em torno do Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS)”. Long, todavia, reconheceu que gestos diplomáticos não bastam: são fundamentais ainda passos mais radicais na forma de sanções à ocupação israelense. O problema, é claro, são os laços militares e econômicos com Israel, ainda robustos junto a muitos Estados latino-americanos. Países como Guatemala, Chile e Colômbia apelaram durante décadas à tecnologia de drones militares fabricados por Israel. O Brasil, por sua vez, mesmo sob governos de esquerda, se converteu em um dos maiores clientes da indústria israelense, não apenas na exportação de armas, como também no treinamento de “forças especiais”. Aqui, um general israelense comentou apropriadamente a dissonância: “Eles nos criticam politicamente, mas ainda nos perguntam … ‘Qual é o nosso truque para transformar sangue em tanto dinheiro?’”
Em nota mais otimista, Pedro Charbel, que se envolveu por anos no movimento de BDS na América Latina, reportou uma rede crescente de organizações que colaboram contra a ocupação, com enfoque em empresas israelenses que treinam e equipam esquadrões da morte na América Latina. Nas redes sociais, surgiram também hashtags e campanhas, como “Olimpíadas sem apartheid”, para contestar a participar de Israel nos jogos no Rio de Janeiro de 2016 — contudo, sem muito aval.
Região em fluxo
A morte de Hugo Chavez se provou um golpe no movimento pró-Palestina na América Latina. Embora Nicolás Maduro busque manter a política externa de seu antecessor, os reveses catastróficos de sua economia tornaram-no vulnerável a pressões externas. No Brasil, o governo de Dilma Rousseff, que sucedeu os dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, foi destituído, dando lugar à ascensão da direita ultraliberal e da extrema-direita.
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Domingues soou o alarme já em 2015: “Países latino-americanos inclinados à esquerda sofrem processos intensos de desestabilização … Caso a direita volte, os ganhos palestinos serão perdidos”.
Wadah Khanfar, ex-editor palestino da rede internacional Al Jazeera, mostou otimismo a médio e longo prazo. Segundo Khanfar, as mudanças tectônicas na política global — ascensão da China, abatimento dos Estados Unidos, ressurgimento da Rússia e crise permanente na Europa — podem criar uma ordem multipolar, inclinada a uma política mais “centrada no lado humano”. Neste entremeio, a mensagem é clara: seja na América Latina ou na Europa, é a sociedade civil quem deve liderar o caminho na luta pelos direitos palestinos.
Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 27 de agosto de 2015
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