Na encosta de uma colina na Cisjordânia ocupada, cinco vacas angus de pelo ruivo pastam sobriamente, enquanto um grupo de colonos ilegais as observa com expectativa. Se tudo correr conforme o plano, essas novilhas trarão o fim dos tempos como conhecemos.
Segundo uma vertente fundamentalista da tradição judaica, as cinzas de uma novilha perfeitamente vermelha são necessárias para um ritual de purificação que traria à luz o Terceiro Templo de Salomão, a ser erguido em Jerusalém ocupada. O santuário, segundo grupos de colonos extremistas, deve ser construído no planalto da Cidade Velha, ao qual se referem como Monte do Templo, onde estão hoje a Mesquita de Al-Aqsa e o Domo da Rocha. Alguns acreditam que o rito de sacrifício da vaca vermelha trará consigo o messias.
Na quarta-feira, 27 de março de 2023, algumas dezenas de colonos israelenses se reuniram em uma conferência nos subúrbios de Shilo, um assentamento ilegal radicado perto da cidade palestina de Nablus, na Cisjordânia, para debater a urgência religiosa das novilhas.
“Esta é uma nova era para a história judaica”, alegou Chaim, colono de 38 anos ao Middle East Eye, enquanto se preparava para tomar seu assento.
Por anos e anos, membros da comunidade do Terceiro Templo, chefiados pelo Instituto do Templo — radicado em Jerusalém, responsável por organizar o evento —, buscam uma vaca que cumpra de maneira impecável os critérios e descrições para a purificação, conforme sua interpretação ascética do Torá. Vacas perfeitas não devem ter uma mancha sequer — seja uma única faixa de pelo preto ou branco —; tampouco devem ser utilizadas para o trabalho.
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“Essas vacas foram trazidas do Texas, criadas em condições especiais para manter sua pureza”, comentou Yahuda Singer, colono de 71 anos do assentamento ilegal de Mitzpe Yericho e tradutor de um panfleto sobre as novilhas vermelhas.
“Nós não podemos sequer encostar nessas vacas”, insistiu sua esposa Edna, de 69 anos. “Você pode torná-las impuras apenas ao colocar sua jaqueta sobre suas costas”.
Não existe vaca perfeita há mais de dois milênios. Ao menos, desde que os romanos destruíram o Segundo Templo de Salomão, supostamente edificado no planalto que abriga santuário islâmico de Al-Aqsa, em 70 d.C.. Para alguns judeus fundamentalistas, junto de evangélicos dos Estados Unidos e outros países, a construção do Terceiro Templo trará o messias — ou o Segundo Advento de Jesus — e, como consequência, o Apocalipse ou o fim dos tempos como assim conhecemos.
Em 2022, cinco dessas jovens vacas promissoras, abençoadas com uma pelagem ocre, chegaram ao território designado Israel e então à Cisjordânia ocupada, de um rancho do Texas, sob enorme fanfarra. Em seguida, receberam guarida em um parque arqueológico, que compreende supostas ruínas bíblicas e um jardim de alecrins.
‘Foi o Hezbollah que descobriu esse evento’
De modo geral, a conferência da novilha vermelha foi como qualquer outra. Rabinos e teólogos discorreram sobre os detalhes das escrituras, enquanto uma multidão de pessoas acenava docilmente sob a meia-luz da plateia. Contudo, houve alguns aspectos únicos. Por exemplo: os dois primeiros palestrantes subiram ao palco com rifles de assalto sobre os ombros.
“Foi o Hezbollah que descobriu esse evento e vem falando sobre isso em seu Telegram”, alegou Kobi Mamo, chefe do sítio arqueológico de Shilo, ao abrir sua fala. O Middle East Eye, entretanto, não conseguiu identificar qualquer comentário do tipo por parte do influente grupo libanês, que mantém uma persistente troca de disparos junto ao exército da ocupação israelense, em meio a uma escalada de tensões que tomou a região.
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Há quem faça piada com a vaca vermelha. Outros sugerem com maior seriedade que há planos iminentes de abater a novilha, no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, onde organizações coloniais ligadas a militantes do Terceiro Templo adquiriram terras.
O rabino Yitzchak Mamo, do grupo fundamentalista Uvne Jerusalem, disse a uma rádio cristã que a cerimônia está planejada para a Páscoa judaica (Pessach), agora no fim de abril.
O movimento Hamas, que combate Israel na Faixa de Gaza sitiada, expressou graves preocupações. Em novembro, uma fonte palestina em contato com a liderança do Hamas reportou ao Middle East Eye que a organização monitora incisivamente os esforços israelenses para assegurar sua permanente supremacia judaica na Mesquita de Al-Aqsa.
“A única coisa que falta é o sacrifício das novilhas, importadas dos Estados Unidos”, confirmou a fonte. “Caso o façam, será um sinal de que pretendem construir o Terceiro Templo”.
Em janeiro, Abu Obaida, porta-voz do braço militar do Hamas, fez um discurso no centésimo dia após operação de 7 de outubro que atravessou a cerca nominal israelense ao chamado envelope de Gaza e capturou colonos e soldados — cuja retaliação foi o genocídio. Abu Obaida vinculou a operação aos avanços de militantes do Terceiro Templo, ao rechaçar a escalada fundamentalista como uma “agressão contra os sentimentos de toda a nação”.
‘Tudo que queremos é um altar’
Yaakov, estudante judaico de 19 anos de Los Angeles, que preferiu se identificar apenas por seu primeiro nome, foi a Shilo para ver as vacas com seus próprios olhos.
“Ouvi falar das novilhas vermelhas e do Primeiro e Segundo Templo toda a minha vida. Estou animadíssimo pela chance de vê-las”, comemorou Yaakov ao Middle East Eye. O colono americano sabe muito bem que a construção de um novo santuário judaico sobre as ruínas de Al-Aqsa é, no mínimo, controversa — “mas não deveria ser”.
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“Havia uma igreja ali, então uma mesquita. Foi primeiro um templo judaico e deveria ser isso de novo”, argumentou Yaakov, ao ignorar a santidade de Al-Aqsa para a comunidade islâmica global. “Não precisa ter violência”.
Boruch Fishman, membro de longa data do movimento do Terceiro Templo, reconheceu ao Middle East Eye que há um extenso caminho entre o abate das novilhas vermelhas e a edificação de sua sinagoga. Fishman identificou 13 problemas a serem resolvidos antes mesmo das obras começarem — incluindo esforços do Knesset, ou parlamento israelense, para “legalizar” tais planos. “É aqui que posso ajudar no sentido político”, afirmou.
Desde que Israel ocupou Jerusalém Oriental em 1967, o governo israelense mantém, em tese, restrições datadas da era otomana sobre as preces judaicas e a presença dos colonos na Mesquita de Al-Aqsa. A entrada de judeus ao complexo islâmico é proibida pelo rabinato-chefe de Jerusalém desde 1921, salvo “ritualmente pura” — isto é, por meio da novilha.
Porém, conforme a sociedade israelense se inclinou cada vez mais à direita fundamentalista, a realidade é outra, com judeus israelenses — quase sempre colonos — invadindo o local regularmente, sob escolta militar pesadamente armada.
O grupo do Terceiro Templo espera que o sacrifício das novilhas vermelhas de Shilo incorra na autorização para que conduzam seu culto nos pátios da mesquita. Uma pesquisa da Universidade de Bar Ilan estimou que as cinzas de uma única vaca podem ser diluídas em água suficiente para 660 bilhões purificações.
“Uma das principais questões é o Waqf”, explicou Fishman, em referência à gestão concedida à Jordânia sobre os santuários islâmicos e cristãos de Jerusalém, incluindo Al-Aqsa. “O Waqf recebe enorme quantia em dinheiro do reino e não acho que vão desistir disso”.
Segundo Fishman, é preciso operar a passos curtos para assegurar a presença judaica no chamado Monte do Templo. “A comunidade islâmica se sente bastante ferida e precisamos ser sensíveis”, argumentou. “Tudo que queremos é um pequeno altar”.
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Denúncias, no entanto, apontam para a demolição total de Al-Aqsa, estrutura designada como Patrimônio da Humanidade, além de terceiro local mais sagrado para os muçulmanos.
Alguns rabinos e militantes do Terceiro Templo já buscam realizar rituais de Páscoa e mesmo sacrifícios nas premissas de Al-Aqsa, sob os olhos atentos dos soldados da ocupação.
“Talvez o Waqf pode ser persuadido a coletar tributos e obter recursos dessa maneira”, acrescentou Fishman. “É claro, nem todo mundo viria com um sacrifício, porque isso seria um banho de sangue. Mas creio que há uma diferença entre o que a gestão jordaniana diz ao público e o que diz entre quatro paredes e penso que podem ser persuadidos”.
Firas al-Debs, porta-voz do Waqf islâmico, respondeu ao Middle East Eye: “Que digam o que que quiserem em suas conferências. Enfatizamos sempre nossa decisão resoluta de que Al-Aqsa pertence aos muçulmanos e aos muçulmanos apenas e não aceitaremos partilha. Suas palavras nesses eventos não significam nada, enquanto não forem oficiais”.
Este artigo foi publicado originalmente em inglês em Middle East Eye em 28 de março de 2023.
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