Em seu último relatório, “Anatomia de um Genocídio“, a relatora especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos nos Territórios Palestinos, Francesca Albanese, concluiu que o limiar do genocídio foi atingido no ataque militar de Israel a Gaza.
Albanese cita vários motivos para chegar a essa conclusão. Em primeiro lugar, a relatora especial argumenta que Israel cometeu vários atos proibidos pela Convenção de Genocídio, incluindo a morte de membros do grupo palestino protegido, causando sérios danos físicos ou mentais aos membros do grupo e infligindo deliberadamente condições de vida calculadas para provocar a destruição física do grupo, no todo ou em parte.
O relatório cita a destruição generalizada e a morte de mais de 30.000 palestinos, incluindo 13.000 crianças – o número de mortos desde então aumentou para 33.000 -, o deslocamento de 80% da população de Gaza e o impacto devastador sobre a infraestrutura civil crítica e o atendimento de saúde como prova desses atos genocidas.
Em segundo lugar, o relatório afirma que há evidências diretas de intenção genocida por parte dos líderes israelenses, incluindo declarações públicas que se referem aos palestinos em termos desumanos e pedem a destruição do grupo. O relatório argumenta que essa linguagem genocida foi internalizada pelas forças israelenses que realizam ataques, citando postagens de soldados nas mídias sociais que se gabam de matar famílias palestinas. A relatora especial afirma que a natureza sistemática e indiscriminada dos ataques, em combinação com a retórica genocida oficial, só pode levar a uma inferência de intenção genocida, conforme exigido pela lei internacional.
Por fim, Albanese acusa Israel de distorcer sistematicamente os conceitos legais do direito humanitário internacional (IHL), incluindo proporcionalidade, distinção e precaução, a fim de fornecer uma cobertura de legalidade para sua campanha genocida. O relatório argumenta que Israel subverteu as regras sobre escudos humanos, objetivos militares, danos colaterais, zonas seguras e instalações médicas para tratar efetivamente toda a Gaza e sua população civil como alvos militares legítimos, revelando a lógica genocida subjacente.
Com base nessa lógica genocida, quando Israel afirma ter matado “terroristas”, à sua maneira distorcida, está dizendo a verdade porque todos os palestinos sob os olhos do Estado de ocupação são “terroristas”. Essa visão não só está profundamente em desacordo com as normas universais básicas, como também é contrária ao direito internacional.
Os palestinos, como o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) declarou inequivocamente, constituem um “grupo protegido” de acordo com a Convenção de Genocídio. Dessa forma, Israel não apenas demonstra intenção genocida ao subverter as regras da guerra, como Albanese sugeriu, mas qualquer pessoa que questione a existência dos palestinos como um povo também está demonstrando uma lógica genocida.
A aplicação generalizada de Israel dessas interpretações distorcidas para justificar ataques indiscriminados e mortes em massa de civis é citada como evidência adicional de que a intenção genocida é a única inferência razoável que pode ser tirada de sua conduta.
Na seção de recomendações do relatório, Albanese pede aos Estados-membros da ONU que reconstituam o Comitê Especial da ONU contra o Apartheid para tratar de forma abrangente a situação na Palestina. Ao contrário de muitas outras recomendações do relatório, como a solicitação da implementação de um embargo de armas a Israel, sanções para garantir um cessar-fogo, apoio a uma investigação do TIJ sobre violações legais por todas as partes, busca de processos sob jurisdição universal e aumento do financiamento para a agência de refugiados palestinos da ONU (UNRWA), que são importantes, à sua maneira, para aliviar o sofrimento atual e levar os criminosos de guerra à justiça, a solicitação para reconstituir o Comitê Especial da ONU contra o Apartheid foi criada para acabar com a Nakba em andamento de uma vez por todas.
Com a comunidade internacional de direitos humanos quase unânime em sua conclusão de que Israel está cometendo o crime de apartheid, tem havido uma discussão crescente sobre qual é o próximo passo para desmantelar o sistema de dominação racial na Palestina histórica e quais ferramentas são necessárias para atingir esse objetivo. A África do Sul fornece um modelo e, mais especificamente, o papel vital desempenhado pelo Comitê Especial da ONU contra o Apartheid e pelo Centro da ONU contra o Apartheid. Ambos foram essenciais para cultivar as bases para o que foi uma das maiores conquistas do século XX.
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Os apelos para a revitalização do Comitê Especial e do Centro têm vindo de vários cantos. Victor Kattan, professor assistente de Direito Internacional Público na Universidade de Nottingham, defendeu sua reativação em um artigo no mês passado. O especialista em Direito Internacional e ativista Dr. John Reynolds também enfatizou a necessidade de reativar o comitê especial contra o apartheid, afirmando que “se desenvolveu um consenso em toda a sociedade civil global de que ‘o crime do apartheid’ continua a ocorrer na Palestina”. Esses apelos foram seguidos por grupos de direitos palestinos que veem a reconstituição do comitê como uma ferramenta vital para desmantelar o apartheid israelense.
O renascimento de dois mecanismos importantes da ONU que desempenharam um papel crucial na luta contra o apartheid na África do Sul representará uma expressão de intenção séria de abordar a origem da ocupação ilegal, da limpeza étnica e do genocídio que duram décadas. Uma olhada no trabalho das duas instituições da ONU é suficiente para saber o quanto elas foram vitais para derrubar o regime de apartheid da África do Sul.
O Comitê Especial das Nações Unidas contra o Apartheid, criado em 1962 pela resolução 1761 da Assembleia Geral das Nações Unidas, foi incumbido de analisar e relatar as políticas raciais do governo sul-africano à Assembleia Geral das Nações Unidas e ao Conselho de Segurança. O Comitê promoveu a campanha internacional contra o apartheid, pressionou por sanções efetivas, providenciou assistência às vítimas e aos movimentos de libertação e divulgou o crime do apartheid e a resistência do povo sul-africano. Ele organizou conferências, seminários e eventos para promover ações coordenadas e moldou a opinião pública por meio de apresentações na mídia, legitimando os pedidos de boicote, desinvestimento e sanções.
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O Centro das Nações Unidas contra o Apartheid, criado em 1976 sob os auspícios do Comitê Especial, ajudou a desenvolver a campanha internacional, produzir relatórios e estudos sobre o apartheid, liderar campanhas de conscientização pública e fornecer assistência humanitária e educacional às vítimas. O Centro também analisou e relatou o cumprimento, por parte de terceiros Estados, de suas obrigações de implementar as contramedidas da ONU contra o regime de apartheid da África do Sul.
Esses mecanismos devem ser revividos para desmantelar o regime de apartheid de Israel sobre o povo palestino. Embora os grupos de direitos humanos tenham determinado que Israel estabeleceu um sistema de dominação racial na Palestina, a comunidade internacional não só deixou de responsabilizar Israel, como também colaborou involuntariamente com esse regime ao ajudar a tentativa de Israel de fragmentar o povo palestino em domínios jurídicos, geográficos e políticos distintos.
Apesar das inúmeras comissões de inquérito e missões de apuração de fatos da ONU que investigaram as violações dos direitos humanos no Território Palestino Ocupado, nenhuma recomendação foi implementada, resultando em impunidade e na continuação de abusos graves. A reconstituição do Comitê Especial e do Centro para relatar com autoridade o regime de apartheid de Israel, organizar e defender uma ação internacional coordenada e contribuir para a formação de um movimento transnacional contra o apartheid israelense, como fizeram no contexto sul-africano, contribuiria muito para trazer paz e estabilidade à região.
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