Como o califado otomano chegou ao fim?

Há um século, a Grande Assembleia Nacional da Turquia aboliu o antigo califado otomano, após 1.300 anos. Sua queda, em 3 de março de 1924, foi um momento crucial na história do emergente Estado moderno, que hoje abriga 85 milhões de cidadãos e se tornou, com o tempo, a 19ª maior economia do mundo. Foi também um marco na história política do Islã, ao consolidar o término do Império Otomano, que influenciou substancialmente as relações entre Europa, África e Oriente Médio por quase seis séculos.

O califado foi uma instituição política islâmica que descrevia a si própria como representante da sucessão direta do Profeta Muhammad e, portanto, a liderança fundamental entre os muçulmanos. No entanto, não sem controvérsia: por vezes, diversos governantes muçulmanos competiram em uma mesma época pelo título de califa.

Diversos califados foram proclamados ao longo da história, incluindo o califado abássida do século IX, que dominou a Península Arábica e os atuais territórios do Irã, Iraque e Afeganistão; o califado fatímida, do século seguinte, na Tunísia contemporânea; e numerosos califados radicados no Egito a partir do século XIII.

Como surgiu o califado otomano?

Em 1512, a Casa de Osman, dinastia governante otomana, reivindicou o califado — reivindicação que cresceu nas décadas seguintes, à medida que o império otomano conquistou as cidades santas de Meca, Medina e Jerusalém, além de Bagdá, antes capital do califado abássida, em 1534.

Nos anos recentes, historiadores contestaram a tese previamente popular de que os otomanos prestaram pouca atenção à noção do califado até o século XIX.

Durante o século XVI, a ideia de califado foi radicalmente reimaginada por ordens sufistas próximas à dinastia otomana. O califa se tornou então uma figura mística, alçada ao poder por suposta divindade e dotada de autoridade temporal e espiritual sobre seus súditos. Deste modo, a corte imperial passou a representar o califa — sempre um sultão — como não menos que representante de Deus na terra.

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O califado otomano, cuja natureza foi reinterpretada múltiplas vezes ao longo do império, sobreviveu por 412 anos, entre 1512 e 1924.

Quem foi o último califa?

O príncipe Abdulmecid, nascido 1868, passou boa parte de sua vida adulta sob rigorosa vigilância e relativo confinamento — medidas então impostas pelo sultão Abdulhamid II sobre todos os príncipes de sua dinastia.

Após Abdulhamid ser deposto por um golpe de Estado em 1909, dando origem a um “califado constitucional”, Abdulmecid — interessado em pintura, poesia e música clássica — se transformou subitamente em uma figura pública, descrito como um “príncipe democrata”. Abdulmecid não apenas pintou imagens da deposição de seu antecessor, como posou para uma fotografia junto com os homens que executaram o ato.

Mas o príncipe caiu em desespero durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), à medida que o exército imperial sofria derrotas após derrotas. Deprimiu-se ainda mais durante a ocupação dos Aliados do território otomano, incluindo a capital Istambul.

Mehmed Vahideddin era então sultão-aclifa, com Abdulmecid como príncipe herdeiro. Entretanto, em 1919, Vahideddin se recusou a apoiar o emergente movimento nacionalista de Mustafa Kemal Pasham que combatia os Aliados na região da Anatólia. Os nacionalistas estabeleceram a Grande Assembleia Nacional em Ancara em 23 de abril de 1920, como pedra angular de uma nova ordem política. Mais tarde, naquele mesmo ano, Kemal convidou Abdulmecid à Anatólia para se juntar à luta nacionalista.

Neste entremeio, porém, o Palácio de Dolmabahce, onde vivia o príncipe, foi sitiado por soldados britânicos e Abdulmecid não teve alternativa senão negar o convite — precedente depois reivindicado pelos republicanos, quando a maré virou contra o califado.

Como Abdulmecid se tornou califa?

Em outubro de 1922, um armistício consolidou a vitória dos nacionalistas e abriu caminho à criação da moderna Turquia. O sultão Vahideddin foi rechaçado por seu povo. Em 1° de novembro, o novo governo aboliu o sultanato — com ele, o Império Otomano.

Em 17 de novembro, Vahideddin partiu vergonhosamente da cidade de Istambul, a bordo de um navio de guerra do Reino Unido. Sem sua presença, o novo governo depôs o sultanato e transmitiu o califado a Abdulmecid, que o aceitou imediatamente e ascendeu ao trono sete dias depois. Pela primeira vez, um príncipe otomano se tornou califa, mas não sultão, eleito indiretamente pela Assembleia Nacional.

Como eram as relações entre Ancara e Istambul?

Um conflito transcorreu quase em seguida. Em seu novo papel, Abdulmecid foi proibido de fazer declarações políticas; ao contrário, o governo em Ancara estabeleceu uma nova perspectiva sobre o islamismo político, conforme a qual o califa era um personagem meramente simbólico. No entanto, como escreveu posteriormente sua neta, a princesa Neslishah, Abdulmecid “não tinha nenhuma intenção de capitular às diretrizes postas”.

Em abril de 1923, o New York Times reportou que o califa, “um monógamo pintor de paisagens, não parecia causar desconforto a ninguém por suas pretensões políticas”.

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A realidade na Turquia era absolutamente distinta, onde a fanfarra e popularidade das procissões semanais de Abdulmecid a diferentes mesquitas de Istambul, para suas orações de sexta-feira, começavam a perturbar o governo. Em uma ocasião, o califa chegou a uma mesquita ao atravessar o Bósforo em uma barcaça remada por 14 homens, exuberantemente decorada com pinturas de flores e o estandarte imperial.

Abdulmecid não foi um complacente califa-marionete. Ao contrário, realizou banquetes, fundou a “Orquestra do Califado” e, para a consternação de Ancara, recebeu diversos encontros políticos em seu palácio.

Tropas turcas entram em Istambul, após retirada das forças aliadas, em 6 de outubro de 1923 [Creative Commons/Reprodução]

O que aconteceu a seguir?

Após a libertação de Istambul, foi proclamada a República da Turquia, em 29 de outubro de 1923. John Finley, americano que presenciou a sessão da Grande Assembleia Nacional, sugeriu com entusiasmo que a nação “assumiu, com esperança, seu primeiro vislumbre diante do mundo”. Segundo Finley, “o rosto interessado e esperançoso — e tenho de dizer, belíssimo — de Latife Hanim [esposa do presidente Mustafa Kemal]” não poderia ser mais distinto do que o semblante do “cabisbaixo califa, cujo cabelo grisalho se cobria com o fez”.

Para muitos observadores, ambas as figuras personificavam aspectos contrastantes da Turquia: seu futuro e seu passado.

Um marco foi a resposta enfurecida do governo a uma carta escrita por líderes muçulmanos na Índia ao primeiro-ministro da Turquia, em 24 de novembro de 2023. Os signatários argumentaram que “qualquer redução em prestígio da figura do califa, ou a eliminação do califado como elemento religioso na vida política da Turquia, seria equivalente a desintegração do Islã — na prática, seu desaparecimento como força moral em todo o mundo”.

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A carta foi publicada por três jornais de Istambul. Seus editores foram presos, indiciados por traição e interrogados em tribunais amplamente publicizados.

Cada vez mais, autoridades do governo viam o califado de Abdulmecid como ameaça à coesão da República. Quando faleceu o ex-presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, em fevereiro de 2024, Ancara se negou a baixar bandeiras a meio mastro em seus prédios públicos, dado que não possuía laços diplomáticos com o regime em Washington. Em Istambul, entretanto, o califa ordenou manifestações de luto tanto em seu palácio quanto em seu iate.

Como se resolveram as tensões?

No começo de 1924, o governo decidiu abolir o califado.

Jornais influentes começaram a publicar artigos atacando a família imperial. Se, na sexta-feira de 29 de fevereiro, Abdulmecid estava aborrecido, em sua procissão semanal, com maior comparecimento de turistas americanos do que muçulmanos locais, certamente não demonstrou. Ao contrário, manteve as aparências e cumprimentou a multidão. Em seu íntimo, porém, sabia muito bem que sua posição era insustentável.

Na segunda-feira, em 3 de março, a Grande Assembleia Nacional não apenas aboliu o califado como destituiu todos os membros da família imperial de sua cidadania turca, ao exilá-los, apreender seus palácios e ordená-los que liquidassem suas propriedades privadas no país no prazo de um ano.

O debate no plenário durou mais de sete horas. “Se outros muçulmanos simpatizavam conosco”, disse o premiê Ismet Pasha, “não foi porque tínhamos um califa, mas porque éramos fortes”. Seu argumento venceu.

Como Abdulmecid foi deposto?

Haydar Bey, governador de Istambul, acompanhado do chefe de polícia, Sadeddin Bey, entregou as notícias a Abdulmecid pouco antes da meia-noite de 3 de março. Conforme os relatos, o califa estudava o Alcorão em sua biblioteca e respondeu prontamente a sua expulsão: “Não sou um traidor. Sob nenhuma circunstância, eu vou embora”.

Delegação oficial chega ao palácio de Abdulmecid (centro) para informá-lo do fim do califado, em Istambul, na Turquia, em 3 de março de 1924 [Creative Commons/Reprodução]

Então se voltou a seu cunhado, Damad Sherif: “Paxá, Paxá, temos de fazer alguma coisa! Você também, faça alguma coisa!”. Mas o paxá nada tinha a oferecer. “Senhor, meu navio está partindo”, respondeu Sherif, curvando-se antes de partir.

A filha do califa, princesa Durrushehvar, tinha dez anos na época. Suas memórias daquela noite reúnem um sentimento de traição — não propriamente do governo, mas sim de seu povo. “Meu pai, cuja família governou por sete séculos, sacrificou sua vida e sua felicidade pelo povo, que não mais o aprecia”, lamentou a princesa.

Em torno das cinco horas da manhã, Abdulmecid deixou o palácio com suas três esposas, filho e filha e suas principais governantas. O califa deposto foi saudado solenemente por policiais e soldados que agora cercavam seu palácio.

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Então viajou a Catalca, a oeste de Istambul. Ao aguardar o trem, sua família recebeu os cuidados de um gerente ferroviário que agradeceu a Casa de Osman como “benfeitor do povo judeu”, e que poder servi-los “durante tempos difíceis” seria “evidência de sua gratidão”. Conforme os relatos, suas palavras trouxeram lágrimas aos olhos do califa.

De volta a Istambul, os príncipes imperiais receberam mil liras cada e dois dias para ir embora; as princesas e outros membros da família ganharam uma semana. Quando os príncipes deixaram a cidade, uma multidão “cabisbaixa e desmoralizada” supostamente lhes deu adeus.

Em questão de dias, a família imediata de Abdulmecid se reassentou em Territet, um pitoresco subúrbio do Lago Leman na Suíça.

Como reagiram os novos governantes da Turquia?

Em Ancara, o fim do califado foi celebrado como começo de uma nova era. Kemal, a fim de atenuar o descontentamento entre os muçulmanos, emitiu um pronunciamento segundo o qual a autoridade do califado fora legitimamente transferida à Grande Assembleia Nacional.

O que adveio, no entanto, foi uma nova ordem secular. Em 1928, o parlamento aprovou uma lei removendo todas as referências ao Islã da constituição da Turquia. Deputados passaram a proclamar seu juramento “em nome da honra”, em vez de Deus.

Fora da Turquia, a abolição do califado deflagrou uma disputa sobre quem deveria ascender ao título. A imprensa internacional especulou que um novo califado poderia surgir em Meca, chefiado pelo rei Hussein da região de Hejaz. O rei Fuad do Egito brincou com a ideia de assumir o califado e o emir do Afeganistão se posicionou publicamente como candidato. Ninguém, contudo, angariou apoio suficiente das lideranças islâmicas para consolidar suas reivindicações.

Após uma semana de exílio, Abdulmecid emitiu uma proclamação pública de seu hotel na Suíça, indicando que “cabe agora ao mundo islâmico, que detém direito exclusivo, transmitir a autoridade plena e em franca liberdade sobre a questão vital”. Seus comentários sugeriam uma reedição do califado otomano, independente do Império Otomano para consagrar sua legitimidade, mas sim do apoio islâmico.

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O plano demandaria, no entanto, poderoso apoio. A família califal acabou em uma casa de campo na Riviera Francesa, patrocinada pelo nizam de Haiderabade, um dos homens mais ricos do mundo e governante de um eminente principado no subcontinente indiano. Foi a Haiderabade, por meio da união entre a Casa de Osman e a dinastia Asaf Jahi, que Abdulmecid se voltou para ressuscitar seu califado. Em 1931, o político indiano Shaukat Ali mediou o matrimônio entre a filha do antigo califa, a princesa Durrushehvar, e o primogênito do nizam, o príncipe Azam Jah.

Abdulmecid apontou seu filho como herdeiro do califado — seu neto seria governante de Haiderabade. Em último caso, jamais houve um novo califado e a recém-instaurada república da Índia anexou Haiderabade em 1948.

Abdulmecid II e sua filha, princesa Durrushehvar, caminham em Nice, na França, após o fim do califado [Creative Commons/Reprodução]

O que aconteceu com Abdulmecid?

O califa deposto nunca conseguiu retornar a sua amada Istambul. Em seus anos no exílio, jamais aceitou que o califado fora abolido. Em carta a um amigo, em julho de 1924, Abdulmecid descreveu a si mesmo, ao parafrasear Hamlet, de Shakespeare, como se sofresse as “flechas da ultrajante fortuna” — muito embora, diferente do príncipe dinamarquês, detivesse ainda “coração pujante, consciência clara e imensa fé”.

Abdulmecid morreu na noite de 23 de agosto de 1944 em uma casa de campo nos arredores de Paris, aos 76 anos de idade. Não muito longe, soldados dos Estados Unidos combatiam batalhões alemães na tentativa de libertar a França de sua ocupação. Quando as balas perdidas chegaram à mansão, Abdulmecid sofreu um infarto.

Em 1939, Abdulmecid manifestou seu desejo de ser sepultado na Índia. O nizam lhe construiu um túmulo, mas parecia politicamente insustentável, em 1944, transportar seu corpo. O governo da Turquia recusou com veemência seu funeral em Istambul e Abdulmecid permaneceu sepultado em Paris por quase uma década.

Enfim, em 30 de março de 1954, o último califa foi enterrado no cemitério de Jannat al-Baqi em Medina, local de peregrinação, na atual Arábia Saudita; perto do local de descanso dos familiares e companheiros do Profeta Muhammad.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 1° de março de 2024.

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