“Estouraram ontem em 30 cidades espalhadas de costa a costa nos Estados Unidos ruidosas e, às vêzes violentas manifestações de rua contra a guerra do Vietnam, nas quais participaram cêrca de 30 mil pessoas, centenas das quais (mais de duas mil) foram presas ou feridas em choque com a Polícia após rasgarem seus certificados de recrutamento militar. O protesto antiguerra foi convocado por uma organização chamada “Resistência” e deverá ser culminar com um comício em massa em Washington no próximo sábado e com uma tentativa de realizar uma greve sentada no Pentágono. Além de Nova York, Oakland e Berkeley, onde ocorreram as principais concentrações populares, verificaram-se passeatas de protestos em Denver, Cedar, Rapids, Iowa, Albany, Poughkeepsie, Pittsburgh, Providence, San Francisco, Chicago, Portland, Washington, Boston e outras cidades. Durante as investidas contra manifestantes em Oakland a polícia tentou impedir o trabalho dos repórteres e expulsou das ruas o pessoal da televisão.
[…] Em Oakland, a Polícia armada com cassetetes e gás lacrimogêneo atacou e dispersou uma multidão de 3.500 manifestantes contrários à guerra do Vietnam que cercaram o centro de convocação militar da cidade.
Cêrca de 25 pessoas caíram ao chão ou foram atacadas enquanto perto de 500 policiais usando capacetes de aço e máscara contra gás faziam sua investida, com a presença de observadores oito pessoas ficaram feridas e os observadores atônitos. Os manifestantes e jornalistas buscaram proteção fora da praça, de uma milha quadrada, para escapar aos duros cassetetes policiais. Foram numerosas prisões. Os manifestantes marcharam até o centro de recrutamento em uma tentativa de fechá-lo a fôrça”.
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Retirando a ortografia arcaica e algumas omissões poder-se-ia apontar facilmente atribuir a essa matéria uma descrição dos protestos pró-palestina que se irromperam nos EUA na última semana. Porém, essa matéria de co-autoria da Agency Press – France Press e Reuters, publicada no jornal carioca “Correio da Manhã” em 18 de outubro de 1967, falava do início das manifestações contra a Guerra do Vietnã, que alcançariam seu ápice no ano seguinte. Entre os paralelos que podemos traçar entre os dois eventos destaca-se especialmente a mudança de pensamento da juventude que demonstra estar na vanguarda do sistema político estadunidense. Em ambos os casos, a contestação frente à política exterior implementada pelos Estados Unidos adveio das camadas mais jovens da sociedade que passavam tanto naquela época quanto hoje uma transformação cultural relevante.
Entre os anos de 1950 e 1960, irrompiam nos EUA vários movimentos de contestação à ordem vigente, a saber, o movimento pelos direitos civis, liderado por Martin Luther King Jr; o revigoramento de organizações marxistas nos EUA que contribuíram para a conformação de movimentos sociais mais radicalizados de recortes marxistas, como os Panteras Negras e Malcolm X; e o movimento cultural hippie que culminou no festival de Woodstock. Essas mudanças que se acumularam ao longo dessas duas décadas deram as bases para uma convulsão social no ano de 1968 que tiveram, inclusive, seu impacto na eleição americana que elegeu Richard Nixon. A contestação da guerra é o ápice do processo de tomada de consciência da juventude que defendia, naquele momento, a mudança estrutural da política externa estadunidense que se pauta, até hoje, no uso da guerra como o principal instrumento político tanto interno quanto externo. Assim como as manifestações contra a Guerra do Vietnam de 1967-1968, os protestos pró-palestina que se disseminaram nas últimas semanas são o reavivamento de uma cultura de contestação que hoje paira sobre a juventude estadunidense.
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Entre os anos 2000 e 2010 a política institucional dos EUA, assim como nas décadas de 1950 e 1960, tem demonstrado cada vez menos capacidade de acompanhar a evolução da sociedade, levando assim a contradição a um patamar que boa parte da população, principalmente entre os jovens, não se reconhecem nos signos tradicionais da sociedade americana. A crise cultural vigente levou uma ruptura no campo dos Democratas, que abraçaram de maneira tática as pautas identitárias para vencer as eleições de 2008 que levaram Barack Obama ao poder. A ascensão das lutas de gênero e raça nos Estados Unidos e a manutenção do status quo (branco e masculino) levou a criação de uma força questionadora entre os jovens que estão cada vez mais atrelados e condicionados a votar naqueles que defendem pautas raciais e de gênero. A defesa dessas pautas nos Estados Unidos é cada vez mais atrelada a um discurso emancipacionista que vê o seu inimigo central no gabinete do Departamento de Estado, responsável pela formulação da política exterior americana.
Os protestos pró-palestina, portanto, inserem-se nesta conjuntura. Desde o dia 7 de outubro – marcado pela reação militar do Hamas à ocupação sionista que já dura 76 anos – a sociedade estadunidense tem trilhado um caminho muito particular em relação as trajetórias enfrentadas no passado. O levante da juventude tem impactado negativamente no apoio da sociedade americana em favor do regime sionista. O que era algo quase unânime entre republicanos e democratas e, por reflexo, em toda a sociedade, hoje, mostra as suas rachaduras.
Na semana seguinte ao 7 de outubro, houve a maior manifestação em apoio a Israel na história dos EUA, com quase 200 mil pessoas. Contudo, com o passar das semanas manifestações pró-palestina começaram a acontecer, inicialmente, de maneira atomizada em todo o país. Porém, as ações foram se espraiando até alcançar o formato que vemos atualmente. Os estudantes universitários resgatando as lutas estudantis a partir do chamado de Gaza.
Essa chamado é ecoado de maneira mais intensa na medida em que as acusações surradas de “antissemitismo” se demonstram cada vez mais infundadas e o nível de opressão sob os palestinos impetrado pelo regime sionista cada vez mais intenso. A contradição leva a situação em que a reação ao sionismo nos Estados Unidos tivesse seu ápice nas universidades em que a maioria dos líderes de governo se formaram. Agora as universidades ressurgem, como no passado, como um espaço de contestação da ordem vigente e do antissemitismo.
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