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Os iemenitas de Cardiff: A mais antiga diáspora islâmica da Grã-Bretanha

Marinheiros do Iêmen chegaram no Reino Unido na década de 1860. O Middle East Eye viajou a Cardiff para registrar em detalhes a história dessa comunidade.
Porto de Cardiff, no País de Gales, em 19 de março 2012 [Julian Nyca/Wikimedia/Creative Commons 3.0]

Quase quatro milhões de pessoas se identificam como muçulmanas no Reino Unido — uma das maiores comunidades islâmicas da Europa. A população é uma antologia elaborada de etnias e linguagens, com raízes que vão de Casablanca a Kuala Lumpur, de Mirpur a Mogadishu.

Até a Segunda Guerra Mundial, contudo, muçulmanos eram apenas uma fração da população, consistindo sobretudo de marinheiros lascar do Iêmen, Somália e Índia Britânica.

No século XIX e começo do século XX, iemenitas, muitos dos quais das aldeias nos planaltos de Taiz, assumiram empregos na Marinha Mercantil, sobretudo nas fornalhas e salas de máquina.

A reputação iemenita para resistência ao calor tem raízes profundas. Uma piada antiga remete à visita de anjos às profundezas do inferno, para checar as condições dos pecadores aprisionados. Abrem as portas de cada fornalha e cada nação lhes pede piedade. Ao chegar ao último cárcere, iemenitas fumam narguilé; soltando fumaça, dizem: “Fecha a porta, faz favor? Vamos pegar um resfriado”.

Lar em Gales

Junto à oportunidade de se assentarem na Grã-Bretanha, surgiram empregos na Marinha, com destaque às zonas portuárias como South Shields, Liverpool e Cardiff — a última intimamente ligada ao Protetorado Britânico de Aden, por meio das remessas de carvão.

Após descarregar em Aden, alguns dos navios de Cardiff levariam pedras locais ao País de Gales, para que não voltassem de mãos vazias. Isso se mostra ainda hoje nas fachadas eduardianas da Estrada da Catedral, no norte da cidade.

A primeira leva de imigrantes teve de se adaptar ao clima, à cozinha e ao espaço urbano — que eram totalmente distintos de seu ambiente natal. Deixaram para trás suas famílias e clãs para se assentarem em albergues sobradados, com a primeira “Casa dos Marinheiros de Cor” fundada na Rua Bute de Cardiff, em 1881. Ali, comiam pratos iemenitas, tomavam chá de cardamomo e jogavam cartas até tarde.

Quando deflagrou a Primeira Guerra Mundial, iemenitas contribuíram também aos esforços da Marinha. Cerca de 3.500 iemenitas perderam as vidas em ambas as guerras. Na vanguarda em casa, exerceram um papel indispensável como bombeiros voluntários, ao patrulhar as docas e enfrentar algumas das mais intensas invasões das Blitz de 1940 e 1941.

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Entretanto, a comunidade logo foi de camaradas de guerra a competição indesejada no período entre guerras. Muitos iemenitas foram barrados dos sindicatos e a marginalização se assentou, durante a Grande Depressão. O historiador Humayun Ansari relata que marinheiros iemenitas dispensados foram deixados “virtualmente passando fome” e 600 foram deportados após uma série de conflitos raciais em 1930.

Integração e assentamento

Os albergues não ofereciam somente descanso, mas um refúgio do preconceito e do desprezo. Foi em um desses albergues, em Butetown, que Ali Salaman começou a cozinhar na década de 1930. Cardiff marcou o fim de uma jornada extraordinária para o então jovem rapaz. Órfão aos nove anos de idade, caminhou 400 km de sua casa em Zabid, na planície costeira de Tihana, na região do Mar Vermelho, até o porto de Aden.

Lá, conseguiu um trabalho na guarnição britânica, no Batalhão de Camelos. Após algum tempo como doceiro, então aos 18 anos, Ali embarcou a Marselha e de lá, em um barco a vapor, partiu a Cardiff.

Os primeiros imigrantes iemenitas que chegaram em Cardiff tentaram abraçar seu país anfitrião. Muitos se casaram com mulheres galesas. Ali, por exemplo, casou-se com Olive, uma menina de Tredegar, no vale de Rhymney. Tiveram dez filhos. A princípio, a família protestante da moça o rejeitou como “pagão”, mas eventualmente Ali conquistou os sogros e genros com seu carisma, sua generosidade e sua contumaz ética de trabalho.

Um dos filhos é Daoud, nome adequado a um homem iemenita-galês, com quem me sentei no restaurante Bab al-Yemen, onde almoçamos um guisado de cordeiro. Seu pai abriu o Café Cairo no início da década de 1940, um restaurante que buscou replicar a atmosfera comunitária dos antigos albergues, ao proporcionar novos sabores aos galeses locais.

A realeza árabe se atraiu pelo Café Cairo, durante suas eventuais visitas ao Reino Unido. Daoud Salaman recorda como em todo Eid, o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser enviava à família um cartão-postal.

Daoud nasceu em 1948 e cresceu em Butetown — região que muito mudou. As docas de Cardiff e Butetown formam a área da Baía do Tigre, uma comunidade repleta de sobrados com terraços e lojas, que se aplainou pouco a pouco ao longo do tempo.

Em todo o Reino Unido, as mudanças econômicas e demográficas transformaram as áreas como a história: após a Segunda Guerra Mundial, com a escassez de serviços na Marinha, muitos dos iemenitas se mudaram com suas famílias às cidades do interior, como Birmingham e Sheffield, para trabalhar nas fábricas e metalúrgicas.

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A Baía do Tigre abrigou por muito tempo uma das maiores comunidades multiétnicas da Grã-Bretanha, com imigrantes da Somália, sul da Europa e Caribe, além — é claro — da diáspora do Iêmen. Segundo Daoud, nas décadas de 1950 e 1960, residentes de todas as raízes tomavam as ruas para desfiles islâmicos, encabeçados por sufistas alauitas ligados ao sheikh Abdullah Ali al-Hakimi, líder das comunidades galês-iemenitas na ocasião.

Daoud descreve a Baía do Tigre como um caldeirão — “onde ninguém via cor … até que saímos dali. Então, tivemos de nos unir, para poder nos defender”.

Membros na família Salaman acabaram por exercer seu próprio papel na história britânica. O irmão mais velho de Daoud, Mashallah “Taffy” Salaman, se tornou treinador de hipismo e seu cavalo, Churchtown Boy, terminou em segundo no Campeonato Nacional de 1977.

Retorno para a ‘casa’

Daoud manteve uma forte conexão com o Iêmen e viajou a Aden aos 16 anos para estudar a lei islâmica e o idioma árabe. Sem família próxima que o recebesse, foi abrigado pelo chefe de al-Mukha, Sayyid Abd al-Noor al-Nahari. Sua menção a al-Mukha me fez falar de “al-Shadhili”, cuja ordem sufista popularizou o consumo de café, que eventualmente se espalhou pela Europa por meio dos otomanos e do comércio mercantil no Oceano Índico.

Continuamos a falar do antigo reino de Saba (Sheba) e sua célebre represa de Marib. Daoud — um repositório de patrimônios ancestrais dos árabes — afirmou: “Café, agricultura escalonada, os próprios árabes … tudo começou no Iêmen”.

Quando Daoud voltou ao Reino Unido, após dois anos no Iêmen, foi recebido por 40 parentes e amigos na Estação Central de Cardiff, vestido com roupas tradicionais e um lenço (shemagh) na cabeça, com uma adaga jambiya presa a seu cinto. Seu regresso à costa britânica marcou o fim de um rito de passagem na identidade galês-iemenita de Daoud.

Daoud cresceu para exercer um papel proeminente na comunidade iemenita de Cardiff. Ajudou a estabelecer o Centro Islâmico do Sul de Gales, que hoje preside, no fim da década de 1970. A organização permanece vital tanto à diáspora iemenita quanto à comunidade islâmica e resistiu a alguns dos mais alarmantes acontecimentos que afligiram a minoria islâmica no país.

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A história da família Salaman — um relato de impérios, imigração e identidade compartilhada — é algo que ressoa às comunidades islâmicas em todo o Reino Unido e muito além. Daoud é hoje um dos anciões iemenitas ainda radicado em Cardiff. Um elo vital com um capítulo fundacional da história dos muçulmanos no país.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 8 de janeiro de 2024

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