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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

Guerra em Gaza: Haia pode aproveitar a janela para julgar Israel

Há décadas criticado por seu viés e sua inação, o Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia, tem agora uma chance como nenhuma outra de levar Netanyahu ao banco dos réus
Sede do Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda, 30 de abril de 2024 [Selman Aksünger/Agência Anadolu]

Desde sua fundação em 2002, o Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia, luta contra a correnteza para encontrar um caminho próprio à legitimidade.

Seu estabelecimento foi um verdadeiro triunfo para o Sul Global, ao estender o possível alcance da lei internacional, muito embora fosse limitado desde os primórdios pelo quadro engessado formalizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela não-adesão das “três potências” — Estados Unidos, China e Rússia — a sua jurisdição. Sobre questões contemporâneas, é ainda limitado pela persistente recusa do Estado colonial de Israel em assinar seu compromisso com a corte.

Apesar de ampla representação — com 124 Estados-membros — a corte criminal de Haia ainda luta por reconhecimento, influência e mesmo legitimidade.

Em seus primeiros anos, foi acusada de concentrar suas atividades, de maneira assimétrica, nos delitos cometidos por lideranças africanas, ao sugerir até mesmo um viés racista. Mais tarde, ao se deparar com as evidências dos crimes conduzidos pelos Estados Unidos no Afeganistão e por Israel na Palestina histórica, o TPI se sentou docilmente sobre uma pilha de arquivos, dossiês e denúncias, ao se limitar, quando muito, a inquéritos diligentes para determinar se haveria razão para indiciamento ou eventuais mandados.

Por conta de sua inação, ficou a impressão de que Haia seria fraca demais para resistir à pressão ocidental. O ócio se atribuiu em parte à natureza radical e ultranacionalista da presidência dos Estados Unidos de Donald Trump, diante de uma temeridade de sanções à própria organização, a fim de impedir quaisquer investigações sobre Washington ou Tel Aviv.

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A história continua, porém com reviravoltas. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 2022, Haia foi chamada a agir com uma pressa sem precedentes pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Logo, sentiu-se no dever de expedir procedimentos para decidir se o presidente russo, Vladimir Putin, seria indiciado ou não por crimes de guerra. Ao preservar uma imagem de subserviência aos países ocidentais, não tardou em emitir um mandado de prisão.

Péssima reputação

Tamanha pressa não foi vista em sua resposta a solicitações legais do Chile e do México sobre a catástrofe humanitária que se desenrola em Gaza, à medida que ambos os governos pedem ao tribunal que investigue as violações israelenses contra a população civil palestina.

O TPI sequer respondeu, até então, à iniciativa de urgência, embora se diga uma e outra vez que esteja prestes a fazê-lo. O promotor-chefe Karim Khan, suspeito de simpatias ocidentalistas, vive pressão cada vez maior para enfim agir, diante da tragédia que assola Gaza.

A diferença gritante na resposta da corte reforçou uma longeva impressão de dois pesos e duas medidas na devida tratativa de crimes internacionais. O TPI tem uma reputação abrangente de instituição fraca, sobretudo por não conseguir compelir qualquer cooperação ou mesmo filiação de Estados-chave desde o princípio. Neste sentido, parece diminuto ao lado de seu irmão mais velho, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), também sediado em Haia, que julga Estados, ao qual todos os membros da ONU são automaticamente filiados.

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O TIJ é consideravelmente respeitado por manter um alto grau de profissionalismo em avaliar o mérito de disputas legais levadas à corte. Tamanha reputação positiva se fortaleceu por ordens quase unânimes, embora interinas, deferidas em janeiro e março, conforme pedido da África do Sul, que reconheceu a “plausibilidade” do genocídio israelense perpetrado em Gaza.

Israel recebeu ordens legais e expressas para permitir o fluxo humanitário aos civis do território sitiado, sem qualquer interferência, ao menos até que se dê o veredito sobre a transgressão de Israel aos termos da Convenção de Genocídio. O que prejudica o TIJ é sua demora, ao passo que o processo deve durar anos.

Além da aceitação da denúncia pela corte, Francesca Albanese, relatora especial da Organização das Nações Unidas para a Palestina, recentemente emitiu um extenso relatório técnico sobre a “anatomia do genocídio”.

Ainda assim, apesar das ordens legais para que Israel abandone seu ostentoso comportamento genocida, persevera o discurso desumanizante dos líderes israelenses, à medida que avançam a Rafah, no extremo sul de Gaza, para dar os últimos toques em seu empreendimento de limpeza étnica, contra toda a sensibilidade humana e protestos internacionais, além — é claro — da vida e da dignidade do povo palestino.

Tentação política

Caso me perguntassem uma semana atrás, eu diria que o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, seria a última pessoa a reconhecer sequer a existência da corte penal de Haia. Não obstante, o líder israelense correu a responder a rumores que sugeriam um eminente mandado de prisão contra ele próprio, seu ministro da Defesa, Yoav Gallant, e seu comandante das Forças Armadas, Herzi Halevi.

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Netanyahu decidiu partir para a ofensiva. Seu vídeo de quatro minutos no qual ataca o Tribunal Penal Internacional vale assistir, senão por um senso de quão potencialmente formidável seria a corte caso de fato exercesse sua função. Se dependesse das lamúrias de Netanyahu, o tribunal estaria finalmente fazendo seu trabalho.

Neste entremeio, o TPI certamente desfruta de uma oportunidade única para agir conforme seu mandato e redimir uma persistente reputação de covardia. Contudo, parece tentador do ponto de vista político ao promotor-chefe limitar as ações de Haia contra Israel e Hamas aos supostos crimes anteriores a 7 de outubro.

Tamanho desvio seria uma decepção dobrada àqueles que buscam pressionar Israel a aceitar e respeitar um cessar-fogo — a partir do qual poderiam transcorrer os procedimentos de justiça, reparação e reconstrução.

Fica a pergunta sobre por que o Tribunal Penal Internacional, com sua baixa estima institucional, parece tão mais ameaçador a Israel do que as diretivas concentradas de seu irmão mais velho, cujos parâmetros são tão mais consolidados internacionalmente. Poderia ser a natureza pessoal dos mandados de prisão a levar a uma resposta passional?

Para Netanyahu, mandar prendê-lo por seus crimes seria uma “ameaça mortal aos direitos das democracias [sic] para se defender”. O premiê israelense não deixou obviamente de citar o Irã. Contudo, todos deveríamos saber a esta altura que Israel não tem sequer intenção de cumprir a lei internacional, não importa a autoridade ou a estima da instituição.

Neste mesmo sentido, a importância do TIJ — e, quem sabe, do TPI — é robustecer a maré que toma corpo, cada vez mais, de apoio aos direitos legítimos do povo palestino em todo o mundo, ao lado de um consenso emergente daquele tipo histórico que contribuiu à derrota dos Estados Unidos no Vietnã e condenou à infâmia o regime supremacista de apartheid na África do Sul. Se o povo palestino finalmente conquistar seus direitos básicos, será à resistência dos vitimizados, conforme reforço do ativismo internacional.

Um encorajamento peculiar é a deflagração de protestos pró-Palestina, apesar da contundente repressão nos Estados Unidos e na Europa, como indício de um engajamento da sociedade civil sobre a luta por um cessar-fogo e pela lei internacional, como uma mudança sem precedentes à abordagem comum sobre Israel nas chamadas democracias liberais do Ocidente.

Este artigo foi publicado originalmente em inglês em 6 de maio de 2024 pela rede Middle East Eye.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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