Após sete meses, toda a construção que permitiu às forças israelenses matarem ao menos 34 mil palestinos, ferirem 76 mil outros, deslocar 2.4 milhões de pessoas e então submetê-las à fome, além de desmantelar seu sistema de saúde e prometer repetir tudo em Rafah, no extremo sul de Gaza, parece implodir.
Líderes políticos que retrataram a carnificina de Israel como direito de defesa, jornalistas que disseminaram historinhas de terror sobre bebês decapitados e estupros em massa, em 7 de outubro, e editores que, dia sim, dia também, ignoraram as denúncias e evidências de ataques diretos contra comboios humanitários correm para cobrir seus rastros.
Todos os argumentos que usaram para manter o massacre escoem por seus dedos: de que seria uma guerra justa, de que Israel tem o direito de “terminar o trabalho”, de que a ação é proporcional, de que o processo legal no Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, de algum modo obstrui as “conversas de paz”, de que Reino Unido e Estados Unidos pedem o comedimento do premiê israelense Benjamin Netanyahu, embora continuem a armá-lo — e assim por diante.
A barragem se rompeu. David Cameron, secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, não consegue mais brincar de gato e rato com a chefe do Comitê de Assuntos Estrangeiros de seu parlamento, Alicia Kearns, que revelou há alguns dias que advogados do governo já sabiam que Israel havia violado a lei humanitária internacional.
Mais de 600 proeminentes advogados, acadêmicos e ex-juízes, incluindo Brenda Hale, ex-presidente da Suprema Corte do Reino Unido e dois outros ministros, assinaram uma carta alertando o governo que manter a exportação de armas a Israel incorre em desrespeitar a lei internacional.
Sir Alan Duncan, ex-ministro do Gabinete de Relações Internacionais, indagou como pode Israel ainda ser considerado um aliado de Londres e pediu que seus principais apoiadores — Stuart Polak, Eric Pickles e Tom Tugendhat — sejam responsabilizados pelos resultados catastróficos de suas ações.
“Penso que qualquer coisa que apoie o que vem se tornando uma catástrofe absoluta em Gaza é inaceitável e que temos de compreender que o que estão fazendo não é somente errado neste momento, mas sim o que Israel vem fazendo há anos, à medida que as Forças Armadas ignoram a lei internacional”, declarou Duncan à LBC.
“O que fazem é apoiar e dar assistência a colonos ilegais na Cisjordânia, que roubam terras palestinas, de modo que este roubo de terras, a anexação da Palestina, deu origem a todos os problemas, incluindo as ações do Hamas e as batalhas que testemunhamos”, observou.
Ponto de virada
O humor de fato está mudando. Uma pesquisa conduzida pela rede YouGov descobriu que 56% dos eleitores britânicos são agora favoráveis a proibir a exportação de armas e peças ao Estado de Israel, além de 59% que denunciam o regime israelense por violar os direitos humanos na Faixa de Gaza.
A pesquisa reitera o forte apoio às sanções por parte de eleitores do Partido Trabalhista, à véspera das eleições gerais. Uma ampla maioria de 71% destes apoia proibir o comércio de armas. Entre democratas liberais são 70%, enquanto entre conservadores — que detém o atual governo de Rishi Sunak — são 38%. Conservadores, em uma escala de dois para um, consideram que Israel viola, sim, os direitos humanos.
Duncan expressa, portanto, os anseios de seu partido.
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Cameron está exposto ao relento, forçado a uma dura escolha: admitir que seu governo viola a lei internacional, e pode ser indiciado por isso, incluindo seu próprio gabinete, ou cessar o envio de armas a Israel.
A carta não é obra de ativistas palestinos, mas fruto da nata do establishment legal, figuras como ex-ministros da Suprema Corte, lordes Sumption e Wilson, e ex-desembargadores e sirs, como Richard Aikens, Anthony Hooper, Alan Moses e Stephen Sedley.
Fundadores e sócios dos principais escritórios de direito do Reino Unido e professores da Universidade de Oxford, da Escola de Economia de Londres e do King’s College de Londres são também signatários.
Mas o que foi que aconteceu essa semana para resultar em tamanha mudança de jogo? O que foi que fez alguns dos principais tabloides pró-Israel se virarem contra ele?
De fato, muita coisa aconteceu antes daquela segunda-feira marcante, 1° de abril, quando um ataque israelense de precisão atingiu um comboio humanitário da ong World Central Kitchen (WCK), resultando na morte de cidadãos estrangeiros e levantando suspeitas por toda parte.
Amanheceu com a retirada das forças da ocupação israelense que tomaram o Hospital al-Shifa, na Cidade de Gaza, deixando o centro médico em ruínas e uma pilha de corpos para trás. O exército de Israel parabenizou a si mesmo por uma operação supostamente muito bem-sucedida. Naftali Bennet, ex-premiê, ex-militar e ativista colonial, afirmou no Twitter: “Incrível conquista no campo de batalha. Resultados notáveis: seis mil civis evacuados em segurança [sic]. Duzentos terroristas [sic] do Hamas mortos. Quinhentos terroristas [sic] do Hamas capturados. Nenhum civil morto [sic]. Nenhum”.
Seu relato é desmentido pela experiência em primeira pessoa da Dra. Amina al-Safadi, que recebeu horas para transferir os pacientes de seu departamento. De fato, dezesseis deles morreram na unidade de terapia intensiva (UTI).
“No segundo dia, nos forçaram a transferir todos os pacientes de onde estavam, da ala de ortopedia no prédio quatro, à recepção, sob um período que eles determinaram”, reiterou al-Safadi. “Muitos morreram. Estavam em terapia intensiva e não pudemos fazer nada por eles. Então nos deram essas pulseiras. Disseram que era para os franco-atiradores não nos matarem quando deixássemos o prédio”.
Tampouco foi a experiência de Rafik, um jovem extremamente magro que mal consegue erguer sua cabeça. “Nos torturaram. Não havia comida ou água”, declarou Rafik. “Ficamos sem comida ou água por cinco dias. Estávamos morrendo, em agonia. Não podíamos fazer curativo em nossos ferimentos. Não aguentamos mais”.
Pacientes, médicos e mesmo os mortos, cujos corpos foram exumados por tratores, eram tudo a mesma coisa para os soldados que sitiaram a instalação, que deixaram para trás um cenário de destruição.
Dois dos médicos mais respeitados de Gaza, mãe e filho, estão entre os mortos. Ahmad al-Maqadmeh, cirurgião plástico em seus 30 anos, e Yusra, cirurgiã geral, foram encontrados junto dos corpos de seu primo Bassem, em uma encruzilhada próxima a um mercado do Carrefour na Cidade de Gaza, a uma curta caminhada de al-Shifa. Executados por franco-atiradores?
Uma mãe expressou seu luto, em busca de seu filho. “Por favor, descubra onde ele está”, disse ela às pessoas a seu redor. “Onde, meu Deus? Por favor, me ajude a encontrá-lo. Só quero encontrar seus ossos. Não quero abandoná-los aqui. Por favor, me ajude a encontrá-lo. Eu imploro”.
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Al-Shifa era o maior hospital de Gaza. Atendia a 30% das demandas de Gaza. Não mais. Se o plano, durante todo este tempo, era tornar Gaza inabitável, destruir al-Shifa é parte do projeto.
E isso foi apenas naquela segunda-feira, no noticiário da manhã. Não parou por aí.
Mais uma linha vermelha
No objetivo de encobrir e impedir os registros dessas cenas horríveis, Netanyahu decidiu fechar os escritórios regionais da Al Jazeera.
Outro prego no caixão de uma paz negociada. Oficiais israelenses pareciam vacilantes em agir contra a joia da coroa do Catar, cientes do papel do país nos projetos de reconstrução em Gaza e na mediação de um eventual acordo com a ala política do Hamas, cuja cúpula está exilada em seu território.
A Al Jazeera, que lamenta as dezenas de seus jornalistas executados deliberadamente por Israel nos territórios ocupados, descreveu as alegações de que seria uma eventual ameaça à segurança do Estado ocupante como “mentira ridícula e perigosa”.
No entanto, é reportar a verdade do que transcorre em Gaza que tanto fere Israel.
O ministro de Comunicações, Shlomo Karhi, acusou a Al Jazeera de encorajar hostilidades contra Israel. “É impossível tolerarmos uma rede de imprensa, com credenciais de nosso governo, que age contra nós, sobretudo em tempos de guerra”, alegou Karhi. É isso que diz um Estado que tanto insiste em propagandear valores compartilhados com as democracias do Ocidente. Liberdade de expressão? Diga isso a Shireen Abu Akleh, Samer Abu Daqqa, Hamza al-Dahdouh e incontáveis outros que pagaram com a vida pelo simples exercício de sua profissão.
Então, veio o ataque aéreo israelense que destruiu o consulado iraniano em Damasco, na Síria, resultando na morte do general Mohammad Reza Zahedi, segundo maior nome na Guarda Revolucionária a ser morto no exterior desde o assassinato de Qassem Soleimani, encomendado pelo então presidente americano Donald Trump.
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Desta vez, Washington correu para dizer a Teerã que não sabia nem teve envolvimento no ataque de Israel, ao descrever uma operação contra uma embaixada ou consulado como mais uma nova linha vermelha.
Daniel Hagari, porta-voz do exército israelense, ecoou o roteiro que justificou a carnificina em al-Shifa, ao declarar à CNN: “Repito, isso não é um consulado. É um prédio militar das Forças al-Quds, disfarçado de edifício civil em Damasco”. Mas Israel sabia muito bem o que tinha feito e qual linha havia infringido. Ao que tudo indica, queria provocar o Irã a entrar na guerra.
Segundo o próprio Departamento de Estado dos Estados Unidos, um ataque direto a uma embaixada é considerado um ataque ao próprio país que ela representa.
Mas Israel também sabe como não usar a mesma lógica quando uma sinagoga ou centro judaico for atingido por um grupo alinhado a Teerã, em retaliação. Certamente, o regime israelense não assumirá a responsabilidade por colocar em risco a vida de cidadãos judeus em todo o mundo — o que, sabemos, é o que tem feito.
“Indefensável … horrível”
E então, e apenas então, ocorreu o triplo ataque a drone que matou os sete trabalhadores da World Central Kitchen, incluindo três cidadãos britânicos.
As manchetes no Reino Unido, Canadá, Polônia e Austrália — lar das vítimas — reagiram com indignação. Mesmo o The Sun, obstinadamente pró-Israel, pertencente aos magnatas da mídia da família Murdoch, partiu para cima. “Os heróis da Marinha, John Chapman e James Henderson, viajavam em um carro claramente marcado pelo logotipo da entidade beneficente World Central Kitchen, quando o comboio foi atingido por mísseis disparados por um drone das Forças de Defesa de Israel [sic]”, escreveu o The Sun.
A agência Sanad, responsável pela verificação de fatos da rede Al Jazeera, confirmou dolo. Três veículos da World Central Kitchen foram alvejados após entregarem cem toneladas de alimento a um armazém de Deir al-Balah. “O segundo veículo foi alvejado a cerca de 800 metros de onde o primeiro foi atingido”, informou a análise. “O terceiro carro foi atingido a cerca de 1.6 km do segundo, com base nas marcas de bombardeio”. Conforme a ong, seu comboio foi atacado “apesar de coordenar seus movimentos” com Israel.
Como então esta sequência de ataques difere de todos os outros ataques contra comboios humanitários da Agência das Nações Unidas para Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), que resultaram em centenas de mortos e culminaram no cerco a al-Shifa?
A única diferença é que os sete mortos, desta vez, eram cidadãos do Reino Unido, Polônia, Austrália e Canadá, e que o fundador da ong é uma celebridade.
Nick Ferrari, apresentador da LBC, proclamou: “É indefensável … Cada um desses fatos é horrível … Como amigo, tenho de dizer: isso precisa acabar”.
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Entretanto, o mesmo devemos dizer de todos os outros ataques a comboios humanitários: são indefensáveis. A única coisa diferente é nacionalidade dos passageiros no carro — isto é, de países que apoiam a guerra. Ferrari poderia muito bem chegar à conclusão de que as ações de Israel seriam inaceitáveis desde o primeiro dia. Mas o que o impediu? Quem sabe foi o fato de se declarar com tamanha firmeza como um amigo de Israel.
“Amigo do quê?”, quem sabe poderia questionar. Amigo do apartheid? Do genocídio? Da fome generalizada? Amigo dos colonos que põe fogo em famílias vivas e suas aldeias? Do fanatismo religioso? Amigo do fascismo?
A falsa indignação de Biden
Mas ninguém parece mais desajeitado em sua indignação encenada que o triste paciente geriátrico que ocupa a Casa Branca, em busca de sua reeleição.
Joe Biden insiste que uma campanha de bombardeios contra a cidade de Rafah, que abriga 1.5 milhão de refugiados, seria uma “linha vermelha”. Descreveu da exata mesma maneira o ataque ao comboio da World Central Kitchen, ao reconhecer que o país aliado “não fez o bastante” para proteger os trabalhadores humanitários, como se tivesse feito outra coisa senão deixar apodrecer cargas de alimento nas fronteiras e bombardear consistentemente suas rotas.
Que baixemos o volume da televisão e ignoremos as notas de repúdio e as declarações de preocupação da Casa Branca e do Departamento de Estado. Tomemos como foco as ações de Biden. O presidente tem poder para suspender todo o envio de armamentos, incluindo a tonelada de explosivos que mandou a Israel, ou até mesmo impor restrições a seu uso. Preferiu não fazer nada. Biden não hesitou em fazer isso com a Ucrânia, ao condicionar o envio de armas à prerrogativa de que não sejam lançadas à Rússia.
Com Israel, acontece o contrário. Enquanto especula publicamente como substituir o atual premiê Netanyahu, considera a venda de 50 novos jatos combatentes F-15, trinta mísseis avançados de médio alcance Aim-120 e kits de munição de Ataque Conjunto Direto — um equipamento que pode transformar “bombas cegas” em itens de precisão, como reportou a rede de notícias Politico.
Os novos F-15 não são para bombardear Gaza, mas sim para ostentar ao Irã e seu enorme arsenal de drones.
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O que Biden fez em abril? Enviou Jake Sullivan, seu assessor de Segurança Nacional, a Riad, na Arábia Saudita, a fim de persuadir o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, a ceder às tentações de assinar os Acordos de Abraão e normalizar relações com Israel apesar da crise que permanece em aberto.
Revolta contagiante
Se Biden realmente pensa que, em meio a tamanha catástrofe criada pelos sete meses de guerra israelense, uma assinatura em um documento será o bastante para conter a revolta que toma conta de corações árabes, da Jordânia ao Marrocos, e muito além, então parece que está mais senil e delirante do que imaginava seus maiores detratores.
O reino da Jordânia se vê entre a cruz e a espada. Seu governo é incapaz de decidir o que fazer: reprimir os protestos que abalam Amã há semanas e reivindicam fim dos laços com Israel, ao prender seus organizadores, ou saudar sua coragem como expressão do humor nacional?
O ex-ministro de Informação da monarquia hachemita, Samih al-Maaytah, em entrevista à emissora saudita Al Hadath, tentou culpar Khaled Meshaal, ex-chefe do braço político do movimento Hamas, que sobreviveu a uma tentativa de assassinato do Mossad israelense em solo jordaniano, pelo clima de tensão que toma o país. Mas Maaytah sabe muito bem que os protestos se tornaram muito maiores do que mera expressão de solidariedade aos palestinos de Gaza. São manifestações de força de clãs nacionais da outra margem do Rio Jordão, que superam a influência dos palestinos em desafiar o rei.
O sentimento de revolta é contagiante, assim como foi logo no início da Primavera Árabe. Os protestos em Amã se ramificaram em manifestações no Marrocos e declarações duras dos sindicatos do Cairo, ambos países sob autocracias alinhados ao Ocidente. Os ditadores que suprimiram com violência a Primavera Árabe se preocupam agora com uma nova onda de protestos e parecem se abraçar diante do abalo.
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A conjuntura é absolutamente nítida, assim como o que ocorrerá caso Israel consiga impor sua guerra sem empecilhos pelos próximos seis meses.
Quem sabe, é preciso coragem para admitir que o suposto sonho de uma pátria judaica no Oriente Médio se tornou um pesadelo. Mas àqueles que apoiam essa aventura, é bem isso que está acontecendo.
Este artigo foi publicado originalmente em inglês em 7 de abril de 2024 pela rede Middle East Eye.