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As ruas árabes de Cingapura: Um olhar à comunidade e seu legado em construção

Árabes em Cingapura já foram uma das comunidades mais ricas do país, mas sofreram duras perdas após a Segunda Guerra Mundial. Hoje, tentam reconstruir seu legado
Mesquita Sultan no bairro árabe de Kampong Glam, em Cingapura, 5 de junho de 2023 [Wikimedia/Creative Commons 4.0/Reprodução]

Ao caminhar pelas ruas de Cingapura, centro financeiro global conhecido por sua rica mistura de culturas e arranha-céus, vemos um bairro que se destaca — Kampong Glam, ou a chamada rua árabe de Cingapura. Ali, são enfileirados sobrados coloridos de dois andares, além de padarias, lojas de roupas e artesanato.

Mesquita Sultan [wikimedia]

No coração desse destino turístico, repleto de artes de rua, repousa a Mesquita Sultan, com seu estilo indossarraceno e um estonteante domo dourado. Um enclave cultural islâmico, por mais de um século, a região serviu de passagem e mesmo moradia a mercadores árabes.

A comunidade vive na cidade há mais de 200 anos e já foi um dos grupos imigrantes mais ricos do país, detentor de enormes porções de terra. Suas contribuições ao comércio e a numerosos setores da indústria ajudaram Cingapura a se tornar a metrópole próspera que é hoje.

A influência árabe se vê na comida, nos lugares de culto e entretenimento. Há ruas com nomes típicos como “Árabe”, “Mascate” ou “Bussorah”. A seguir, damos uma olhada nessa comunidade que há séculos é um centro de comércio árabe internacional, preservada até hoje.

Origens da comunidade árabe

Acredita-se que os primeiros árabes chegaram a Cingapura em 1819, mesmo ano que Stamford Raffles, oficial do Império Britânico, supostamente fundou a versão moderna da cidade-Estado. Muitos vieram do Vale de Hadramaute, no sul do Iêmen, considerados saídes, que reivindicam descender do Profeta Muhammad. Atravessaram oceanos para migrar ao Sudoeste da Ásia, no século XVIII, onde comercializavam bens, como têxteis e especiarias.

“Raffles os convidou a Cingapura, que já era um porto movimentado, para que investissem ali”, relatou Khadija Alattas, presidente da Rede Árabe de Cingapura (Anas) ao Middle East Eye.

Os árabes se assentaram em uma área de Kampong Glam, perto da Residência do Sultão malaio, pois, segundo Raffles, “a população árabe requeria toda consideração”.

O comerciante saíde Mohammed bin Harun Aljunied e seu sobrinho Syed Omar bin Ali foram os primeiros a se assentar em Cingapura. Os Alsagoffs e Alkaffs, outras famílias abastadas da região de Hadramaute, seguiram a deixa.

Comunidade próspera

Em torno de 1930, havia 1.200 árabes em Cingapura. “No decorrer dos anos, adquiriram grande volume de terras até o ponto de que possuíam mais da metade do território”, explicou Alattas.

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Os árabes não deixaram suas terras ociosas, mas sim desenvolveram fazendas, construíram lojas e estabeleceram posse de alguns dos prédios mais prestigiosos, como a Mansão Alkaff e o Hotel Raffles, considerado, por sua vez, um monumento nacional, estabelecido em 1887 pelos irmãos armênios Sarkies, hoteleiros de luxo nascidos no Irã. O que pouco se sabe é que a propriedade pertencia à família Alsagoff, que a concedeu aos irmãos Sarkies.

Conforme a escritora Gretchen Liu, os Alsagoffs não se envolveram na gestão do hotel, mas sim “investiram na propriedade e, especula-se, pagaram por sua expansão”. Seu papel foi de apoio: “Contrataram os melhores arquitetos, foi o primeiro prédio em Cingapura a ter eletricidade”.

Em 1938, os Alsagoffs eram tão influentes que, durante uma visita ao Egito, um dos membros da família foi recebido pessoalmente pelo rei Farouk I.

“Descendentes das famílias árabes ainda ostentam grande orgulho de seu legado — com razão. Eram muito ricos e cosmopolitas para sua época”, acrescentou Liu.

O colapso da fortuna

Contudo, a fortuna não durou.

Em 1939, o governo colonial introduziu uma série de regulações imobiliárias. E em 1965, após a independência de Cingapura, a Lei de Aquisição de Terras autorizou o governo a adquirir posses privadas para habitação e desenvolvimento por um “valor abaixo do mercado”. Até a década de 1980, o governo já havia se tornado o maior proprietário de terras do país, enquanto os árabes viam os valores de suas terras desaparecerem.

Alattas, descendente da família Alsagoff por parte de mãe, testemunhou as perdas em primeira mão. Nasceu perto do bairro árabe, em um complexo de oito a dez bangalôs onde morava toda sua família. Quando ela tinha 13 anos, a propriedade inteira foi tomada pelo governo por meio de uma indenização mínima.

Com o tempo, a comunidade conseguiu se adaptar, ao investir em outros setores.

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Huda Aljunied, descendente da primeira família a ancorar em Cingapura, recordou que seu avô possuía diversas lojas na Rua Árabe, nas quais vendia perfumes orientais e tecidos artesanais da Indonésia. Seus tios assumiram o negócio e a empresa — Toko Aljunied — é hoje referência pela qualidade de seus designs e materiais. A mãe do primeiro primeiro-ministro de Cingapura, Lee Kuan Yew, foi uma de suas clientes.

A avó de Aljunied também possuía espírito empreendedor: “Costumava fazer medicamentos de homeopatia ao moer bem as ervas e fazer um emplastro transformado em comprimidos fáceis de engolir. Então embalava as pílulas em plástico e marcava o nome do produto com um rótulo em árabe”.

Fusões gastronômicas

As famílias árabes fizeram outras contribuições consideráveis, desde a construção da Mesquita Omar Kampong Melaka, primeira mesquita da ilha, a hospitais, pontes e poços. Os Alkaffs foram responsáveis por construir duas mesquitas, jardins orientais e o Arcade, primeiro shopping de Cingapura.

Hoje, estima-se que a população árabe em Cingapura esteja entre oito mil e dez mil pessoas.

“Vivemos em um lugar muitíssimo seguro onde podemos praticar nossa cultura, nossa religião e nossas tradições sem qualquer inibição”, destacou Alattas, ao explicar que muitos dos cidadãos do país têm orgulho de sua ascendência árabe e muçulmana.

Feira Gastronômica Anual do Ramadã, em Kampong Glam, em Cingapura, em 17 de março de 2024 [Wikimedia/Creative Commons 4.0/Reprodução]

Os árabes em Cingapura também fizeram contribuições à rica cena gastronômica e, ao longo do tempo, criaram fusões.

“Um exemplo é o café árabe com cardamomo, que os árabes de Cingapura costumam misturar com folhas de pândamo ou gengibre. O café costuma ser servido para receber bem convidados ou romper o jejum”, comentou Alattas.

Há também a versão cingapurense do foul medammes, um guisado de feijões-fava que costuma servir de café da manhã no Oriente Médio. O kuih makmur é a versão local do doce de mamule, muito comum no período da Páscoa ou do Ramadã. Em Cingapura, é um doce menor recheado de nozes em vez de tâmaras, pistaches ou amêndoas.

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O arroz mandi — tradicional prato de Hadramaute feito de carne e arroz — também se encontra nos menus de alguns restaurantes tradicionais. “A versão cingapurense é um tanto diferente do prato original que minha falecida avó costumava fazer”, recordou Aljunied. “Aqui, eles pulam um passo, que é defumar o arroz cozido por alguns minutos para dar um sabor distinto”.

Criando um novo legado

Hoje, os árabes de Cingapura não parecem interessados em sofrer por seu passado, mas sim em criar um novo legado capaz de contribuir com sua comunidade.

“A maioria de nós não é mais tão abastada quanto nossos ancestrais”, observou Aljunied. “Não podemos mais fazer as impactantes contribuições filantrópicas que eles fizeram, ao doar terras para construir escolas e hospitais, mas podemos construir um novo legado ao colaborar com as nossas habilidades e especialistas. Temos muitos médicos e especialistas talentosos nos campos da arte, da moda e da música”.

Conforme Alattas: “Este é um momento muito bom para a comunidade árabe, à medida que o governo promove a diversidade, incluindo entre as minorias étnicas”.

Organizações como a ANAS tem uma postura proativa ao organizar feiras gastronômicas, bolsas de estudo, concertos de música, exposições e esforços assistenciais a refugiados da Malásia, da Síria e do Iêmen. A comunidade tem um plano ambicioso para estabelecer um Centro Árabe de Cingapura no bairro de Kampong Glam — onde tudo começou.

Alattas espera que o governo os ajude, incluindo com incentivos técnicos e fiscais.

“É a coisa certa a fazer dado o tanto que a comunidade árabe contribuiu com o país”.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 2 de março de 2023.

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