Venezuela e Irã: os acordos em jogo na sucessão de Raisi

A Venezuela é provavelmente o país na América Latina que mais sentiu a morte do presidente do Irã, Ebrahim Raisi e de seu chanceler, Hossein Amir-Abdollahian,confirmada no domingo (20) após a localização do helicóptero em que viajavam. Cuba e Nicarágua também têm motivos para se preocupar com o impacto da tragédia nas relações com o Irã, como parceiros que são da estratégia iraniana para a América Latina e Caribe.   Neste momento, porém,  a volta das sanções impostas pelos EUA à indústria petrolífera venezuelana intensifica o foco na parceria do país de Maduro com o futuro do Irã.

Em abril deste ano,  restrições tornaram ilegais parcerias entre empresas americanas e a Petróleos de Venezuela S.A (PDVSA), impactando a relação com várias petroleiras que haviam retomado negociações com a estatal venezuelana,  desde que as sanções impostas desde 2014 foram aliviadas seis meses antes. Dificultando exploração da maior reserva de petróleo do mundo, as alegações oficiais para as sanções internacionais se concentram no regime político da Venezuela especialmente nas eleições que mantêm o governo bolivariano no poder,

O Irã vive a realidade das sanções impostas pelos Estados Unidos desde a revolução de 1979, e que em 1995 passaram a abranger empresas externas que negociam com o país. Novas sanções foram aplicadas em 2006  pelo próprio Conselho de Segurança da ONU, em razão do programa nuclear iraniano. Sob o governo de Donald Trump nos Estados Unidos, que retirou-se unilateralmente de um acordo nuclear negociado em 2015 com o Irã, as sanções foram retomadas.

“As sanções são um tipo de guerra contra os países, em que a arma mudou. Ontem era uma arma militar, e hoje é uma arma de sanções”, disse o presidente Raisi em visita à Caracas no ano passado. “As sanções buscam quebrar os povos. Portanto, temos que aumentar as relações entre os países sancionados, o que contrapõe e neutraliza as sanções”.

Dívida de gratidão

A Venezuela tem uma dívida de gratidão com o Irã que não se apaga com a troca de comando. Quando as sanções dos EUA asfixiaram sua economia, foi o Irã quem socorreu o país com acordos que fizeram o petróleo bruto venezuelano represado pelo embargo sair do país e a gasolina iraniana entrar, ajudando a mover  a economia de ambos.  Como  Ebrahim Raisi declarou no ano passado, durante visita a Caracas, o que une Irã e  Venezuela não é apenas uma relação diplomática normal, mas uma relação estratégica entre dois países com “interesses comuns, visões comuns e inimigos comuns”.

Nicolas Maduro, em particular, pode ter uma dívida até pessoal com o país parceiro. Se é  que os espias de Washington estão certos, foi por ajuda do Irã que uma missão maluca, batizada Operação Giedon,  para prender Maduro,  em 2020, foi desbaratada. Quem relatou isso para a BBC foi Joseph Humire, diretor executivo do Centro para uma Sociedade Segura e Livre (Center for a Secure Free Society),instituição baseada em Washington.

Drone Mohajer teria ajudado a desbaratar tentativa de captura de Nicolás Maduro em 2020 [Divulgação]

Segundo ele, foi com drones  iranianos – ou feitos na Venezuela a partir dos  drones Mohajer 2 do Irã, que o governo detectou a operação, em que dois ex-veteranos dos EUA acompanhados por exilados venezuelanos tentaram se infiltrar no país via Colômbia,  capturar Maduro e dar posse ao amigo dos EUA, Juan Guaidó. Outra teoria é a de que a operação fracassou porque era maluca mesmo – e nem Guaidó, nem a oposição venezuelana reivindicaram a autoria do fiasco.

O fato é que, se a Venezuela pode desfilar drones armados de fabricação caseira, nas marchas cívico-militares, a tecnologia vem do parceiro estratégico.

Duas décadas de acordos, e mais duas pela frente

Em 2005, o então presidente iraniano Mohammad Khatami fez a terceira visita ao colega  Hugo Chávez, em que assinaram mais de 20 acordos nas áreas de indústria petroquímica, de energia e construção civil. Em fim de mandato, Khatami foi sucedido alguns meses depois por  Mahmoud Ahmadinejad. Até 2013,  Irã e Venezuela assinaram mais de 270 acordos envolvendo energia,  montadora de automóveis,  desenvolvimento e programas bancários.

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Antes de Raisi, que assumiu a presidência em em 2021, a última visita de um presidente iraniano ocorreu em 2016, quando seu antecessor, Hassan Rohani, visitou Cuba e Venezuela. Mas desde então, outros acordos foram feitos nos setores de energia, agricultura, habitação e infraestrutura, além de projetos industriais para fabricação de tratores, cimento e habitações populares. Em 2020, o Irã passou a ajudar na reforma de refinarias fechadas ou avariadas em razão das sanções.

O transporte de petróleo e gasolina de lá pra cá virou uma aventura no mar do Caribe, com os EUA caçando embarcações e frotas do Irã que precisaram ser escoltadas pelos parceiros até atracar nos postos venezuelanos.

Em 2022, Maduro visitou o Irã e os dois países fecharam um acordo de 20 anos. E no ano passado, foi Raisi quem visitou a Venezuela, selando com Maduro acordos de comércio bilateral estimado inicialmente em R$ 3 bilhões.

No sábado, quando ainda não se sabia da morte de Raise, o chefe da autoridade nuclear do Irã anunciou  ajuda à Venezuela a reparar seus aceleradores de partículas necessários para tratamento de câncer por radioterapia, todos  paralisados nos hospitais venezuelanos em razão das sanções.

O lado feio do valioso amigo

As boas e frutíferas relações da Venezuela com o Irã no enfrentamento às sanções internacionais conviveram com o perfil repressivo de Raise, um político que a Anistia Internacional queria ver investigado em vida  por milhares de mortes e desaparecimentos forçados de opositores.

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O fato recente mais conhecido da opinião pública foi a aplicação violenta da lei do uso obrigatório do véu, que levou à morte  Mahsa Amini em 2022, quando estava sob custódia da polícia, acusada de ferir a lei de costumes pelo uso inadequado do véu. O caso provocou o movimento “Woman Life Freedom”, reprimido  pelo regime iraniano com violência que resultou em centenas de mortes.

O currículo violento de Raise vem de a década de 80, quando ele se tornou promotor  de Karaj, província de Alborz, aos 20 anos, seguindo depois na carreira política. “Em 1988, Ebrahim Raisi foi membro da ‘comissão da morte’ que levou a cabo o desaparecimento forçado e as execuções extrajudiciais de vários milhares de dissidentes políticos na prisão de Evin, em Teerã, e na prisão de Gohardasht, na província de Alborz,  e à subsequente repressão mortal.” – acusa a Anistia. Em maio de 2018, Ebrahim Raisi defendeu publicamente os assassinatos em massa, descrevendo os massacres como “uma das orgulhosas conquistas do sistema [da República Islâmica]”.

Na corda-bamba das relações desiguais no mundo, manter os laços com Irã é parte do esforço comum de sobreviver ao poder boicotador  e hegemônico dos Estados Unidos,  e deslocar energia para outras alianças, a exemplo da China e da Rússia – também importantes parceiras da Venezuela.

Neste momento, é a continuidade dessa parceria da sobrevivência que aguarda os próximos acenos na sucessão do Irã.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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