Guerra em Gaza: Potências ocidentais jamais acreditaram na lei internacional

Estudiosos da geopolítica há muito tempo entendem que, no que diz respeito a interesses estratégicos das principais potências, o direito internacional permanece à margem exceto quando conveniente como propaganda de guerra contra seus adversários.

De fato, a própria Organização das Nações Unidas (ONU) foi arquitetada e estabelecida de maneiras que reconhecem este aspecto da vida política internacional. Caso contrário, dar poder de veto no Conselho de Segurança aos vencedores da Segunda Guerra Mundial não faria sentido.

Tamanha isenção da lei internacional também se demonstra pelos julgamentos a crimes de guerra de Tóquio e Nuremberg após a guerra, ao passo que apenas violações daqueles que perderam foram abordadas e os notáveis crimes dos vencedores — como os bombardeios indiscriminados contra a cidade de Dresden e os lançamentos atômicos contra Hiroshima e Nagasaki — foram ignorados e permanecem impunes.

Por razões deveras compreensíveis, até hoje, muitos no Japão creem que o uso das armas de destruição em massa contra as populações civis de ambas as cidades constitui crime de genocídio.

Neste contexto, as democracias vitoriosas pós-1945 deram a breve impressão de firmarem certo compromisso sobre a construção de uma ordem mundial mais estável, defensora dos direitos humanos e respeitosa para com os direitos soberanos dos Estados mais fracos. A Guerra Fria, é claro, ficou pelo caminho de tais promessas idealistas, paralisou a ONU em seus “esforços de paz” e reduziu, cada vez mais, a adesão à lei internacional.

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Com o fim da Guerra Fria, marcada pela queda do Muro de Berlim e pelo colapso da União Soviética, parecia que os valores da democracia liberal — incluindo suposto respeito à lei e aos procedimentos internacionais — seria promovido e cumprido respeitosamente diante do vácuo soviético, deixando — ao menos na primeira impressão — a Casa Branca como a única força hegemônica ainda sobrevivente.

Mas isso não era para acontecer. Os Estados Unidos investiram pesadamente na ordem do pós-guerra, embora focados no poderio econômico e militar, com intuito de consolidar um futuro em torno de mercados, alianças e militarismo. Na prática, negligenciou as chances de robustecer a ONU e conquistar o pleno desarmamento nuclear — assim como alcançar maneiras de combinar status geopolítico com uma concepção sustentável e embasada nos problemas do mundo real da política internacional.

Oportunidades perdidas

As chances que ficaram pelo caminho para construir um mundo melhor — ao combinar os interesses estratégicos dos diferentes países com uma política externa de respeito à lei — jamais receberam a devida seriedade pelas elites e think tanks de Washington. As raízes do militarismo perseveraram, profundamente entranhadas no consenso político, econômico, cultural e de segurança, em uma burocracia altamente voltada para a guerra.

O período posterior à Guerra Fria levou a um momento de unilateralismo geopolítico, com enfoque inclusive em apoio notável a alguns aliados extraordinários, como Israel, Taiwan e Ucrânia, não importa quanto desafiassem a lei internacional e evadissem esforços de paz e negociações diplomáticas.

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A ascensão da China autocrática, combinando violações domésticas de direitos humanos e veloz promoção ao status de superpotência, impôs um desafio ao centralismo favorecido pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e sua visão mercantil de futuro.

Em 2021, com o advento da liderança de Joe Biden e Antony Blinken na política externa de Washington, o Estado chinês se viu sob numerosos sermões públicos para respeitar “uma ordem mundial baseada nas regras”. Pequim foi reiteradamente acusada de violações das normas internacionais em seu tratamento sobre o Tibete e a minoria uigur, na província de Xinjiang, assim como o encorajamento das políticas repressivas em Hong Kong e ameaças postas à independência de Taiwan.

Presidente dos EUA, Joe Biden, na Casa Branca, em Washington DC, 14 de maio de 2024 [Celal Günes/Agência Anadolu]

Parecia estranho que essas “regras” jamais fossem vinculadas pelo secretário de Estado e chefe de política externa, Antony Blinken, com as instituições da lei internacional ou com a autoridade das Nações Unidas. De fato, seus apelos por respeito às “normas” passaram a parecer cada vez mais um reforço da primazia geopolítica dos Estados Unidos, sem jamais se projetar devidamente à própria política externa da Casa Branca.

Então, em fevereiro de 2022, ocorreu a invasão russa sobre a Ucrânia — definitivamente, em franca violação da proibição a atos de agressão, um dos pouquíssimos princípios legais da ordem internacional regularmente respeitados desde 1945, com apoio da maioria dos Estados, à medida que a Assembleia Geral das Nações Unidas confirmou amplo repúdio de seus membros votantes em plenário.

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Washington, como autoproclamado líder de uma suposta aliança de Estados democráticos, pareceu ofertar ao mundo, no mínimo, um respeito geral às regrais mais fundamentais da lei internacional, apesar de contornar seus limites em Kosovo (1999) e Iraque (2003). Não obstante, seus pretextos legais — ainda aparentemente plausíveis — buscou abafar toda e qualquer oposição às prerrogativas de governo, seja na ONU ou da opinião pública, muito embora, no caso iraquiano, milhões tenham protestado contra a invasão.

A resposta pública mundial de 20 anos atrás foi superada apenas pelas reações ao extenso histórico de violações de direitos contra o povo palestino, cujo clímax se atingiu durante os últimos seis meses, com o genocídio em Gaza.

Limites embaçados

De todos os limites postos, nenhum teve tamanho consenso quanto o “genocídio”, apesar das dificuldades práticas de conceituá-lo legalmente em meio a confrontos étnicos ou em tempos de guerra. A lei internacional e suas ramificações diplomáticas são claríssimas em proibir atos de genocídio, como aqueles acumulados durante os massacres israelenses em curso na Faixa de Gaza, apesar da indignação pública, sob cumplicidade flagrante e mesmo inabalável das potências ocidentais.

A autoridade normativa pré-Gaza sobre o conceito de genocídio foi tamanha que a gestão do então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, em 1994, censurou o uso da palavra em discursos oficiais, sob receio de que descrever a conjuntura em Ruanda como tal criaria pressões irresistíveis à Casa Branca para que pressionasse pelo fim das mortes.

As políticas sérvias de limpeza étnica contra a população da Bósnia, nos anos 1990, foram postas no banco dos réus, sob acusação de genocídio pelo Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), muito embora somasse obstáculos para reconhecer dolo. Mais recentemente, os atos repressivos do regime militar em Myanmar contra os muçulmanos rohingya ganharam a alcunha, quase generalizada, de genocídio, levando a uma denúncia de Gâmbia à corte em Haia, em um processo ainda pendente.

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Por décadas, Israel foi bem-sucedido em invocar os traumas do Holocausto para encobrir seu próprio processo, hediondo e atroz, de táticas coercitivas para alcançar a despossessão máxima e a expulsão da maioria nativa de árabe-palestinos da Palestina histórica, a fim de criar o Estado colonial sionista em 1948 e ocupar Jerusalém Oriental, Cisjordânia e Faixa de Gaza em 1967.

Israel busca fugir do coro global de repúdio às suas ações mediante a difamação de seus críticos legítimos como “antissemitas”, e insiste, até hoje, no argumento pernicioso de que não pode incorrer em genocídio porque, certa feita, foi ele próprio vítima de genocídio — algo que contradiz os versos de W.H. Auden: “Àquele que se faz mal devolve o mal”.

Como então podemos compreender tamanha disposição dos velhos poderes coloniais do Ocidente para manter tamanho apoio a Israel enquanto este, em tempo real, conduz um dos casos mais nítidos de genocídio de toda a história humana?

O processo de extermínio se justifica de maneira chocante pela linguagem desumanizante adotada por algumas das maiores lideranças de Israel, dentre as quais o próprio primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu ministro da Defesa, Yoav Gallant. Por seis meses, atos indiscriminados de violência devastaram a vida de 2.4 milhões de palestinos em Gaza, via destruição sistemática de seu ambiente já empobrecido.

O genocídio serve como um meio coercitivo para impor a expulsão em massa de um povo, ao aplicar o ethos colonial “fuja ou morra”.

Apoio resoluto

A coalizão do governo de Netanyahu assumiu posse em janeiro de 2023 e recebeu, mesmo no Ocidente, o título inglório de liderança “mais extremista” da história de Israel.

O que a tornou particularmente “extrema” — fora as posições ministeriais dos líderes do partido supremacista Otzma Yehud (Poder Judeu), Itamar Ben Gvir, e seu parceiro teocrata e fundamentalista Sionismo Religioso, Bezalel Smotrich —, foi o aval imediato à escalada colonial na Cisjordânia ocupada, o apagamento da entidade palestina do mapa do “Novo Oriente Médio”, exibido por Netanyahu na ONU, e sobretudo a determinação mais e mais nítida de obter sua “solução final” para o projeto sionista, ao incorporar Cisjordânia e Gaza ao Estado colonial de Israel.

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Meses após o governo israelense assumir posse, ocorreu o ataque do movimento Hamas em 7 de outubro. Um massacre sem precedentes se seguiu, levando a denúncias contra o regime israelense de genocídio nos fóruns internacionais. Em janeiro, o TIJ determinou a “plausibilidade” de que Israel comete atos de genocídio em Gaza.

Em março, de forma deveras mais conclusiva, um relatório meticuloso da relatora especial das Nações Unidas para os territórios palestinos ocupados, Francesca Albanese, encontrou “bases razoáveis para crer que Israel cruzou o limite indicado para exercer genocídio”.

Líderes israelenses, desde o princípio não se acanharam em deixar claros seus intentos de extermínio, e o imaginário difundido nos noticiários de televisão e nas redes sociais, sobre as atrocidades perpetradas em Gaza, tornou o conceito de genocídio palpável aos olhos e ouvidos de todo o planeta. Contudo, estranhamente, não comoveu os líderes ocidentais, supostamente democratas, a ajustar seu curso.

Os Estados Unidos se mantiveram impassíveis: vetaram uma série de resoluções deferidas no Conselho de Segurança por um cessar-fogo, difamaram o processo em Haia como “sem mérito” e atacaram a impressionante pesquisa analítica de Albanese, sob a égide da ONU, como o trabalho de uma “antissemita”. Tudo isso, enquanto pressionavam por aprovação do Congresso para aumentar a assistência militar — lê-se bombas e munição — enviada a Israel, sem jamais abalar seu apoio diplomático na arena internacional.

Indignação midiática

Os Estados Unidos enfim pareceram vacilar em sua postura incondicional de apoio a Israel à medida que se demonstrou que esta feria os sonhos de reeleição de Joe Biden frente ao predecessor republicano, Donald Trump.

A indignação tomou ainda mais corpo após um bombardeio israelenses contra o comboio humanitário da ong World Central Kitchen (WCK), que matou sete voluntários — seis deles cidadãos ocidentais —, que buscavam mitigar a fome dos palestinos de Gaza.

O tumulto no Ocidente foi tamanho que levou Netanyahu a emitir um raríssimo pedido de desculpas. O incidente trágico também validou a suspeita de que o assassinato de civis da Europa, em condição de voluntariado em Gaza, detém muito mais ressonância política nos países ocidentais do que a morte de dezenas de milhares de palestinos inocentes, entre os quais pacientes e médicos.

Como explicar essa vergonhosa cumplicidade com Israel e sua rejeição plena às regras do direito internacional, diante de um genocídio tão cruel e transparente? Se Washington se mantém disposto a exonerar Tel Aviv do crime de genocídio — o crime de todos os crimes —, de maneira tão gritante, uma mensagem ao mundo se desenha: que mesmo diante das circunstâncias mais horríveis, as afinidades geopolíticas precedem a lei e a ética, inclusive no contexto das democracias liberais.

Há outros fatores que contribuíram para essa virada catastrófica na política global, como a desumanização do povo palestino por décadas, ao pressupor todos os civis de Gaza como maculados pelo Hamas; o ponto de vista orientalista de que árabes e muçulmanos, como é o caso de boa parte dos palestinos, são “sub-humanos”; pressões vis sobre os governos do Ocidente pelo lobby colonial sionista; e uma distorção da culpa pelo Holocausto na Europa — sobretudo na Alemanha.

Quem sabe de maneira mais profunda, senão mais visível, testemunhamos uma versão do chamado “choque de civilizações”, com potências europeias e seus frutos coloniais, salvo a Espanha, de um lado, e sociedades e movimentos islâmicos, do Sul Global e solidários, do outro, culminando em algo próximo da velha profecia de Samuel Huntington, proclamada em 1990, do “Ocidente contra o restante”.

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No que concerne Israel, os Estados Unidos é uma “democracia sem escolhas”. Ambos seus partidos competem por credenciais favoráveis junto ao regime de apartheid. O fim deste mecanismo de apoio somente se dará uma vez que um dos partidos — ou uma longínqua alternativa — abrace um estadismo responsável, com base no respeito à lei internacional e suas instituições, inclusive a ONU.

Neste entremeio, a tempestade paira sobre o planeta, quem sabe, como nunca antes, e a cruel vitimização do povo palestino persistirá sobre todos, até que avistemos enfim novos horizontes.

Este artigo foi publicado originalmente em inglês em 12 de abril de 2024 pela rede Middle East Eye.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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